Na última quinta-feira (23), uma decisão do STF passou a permitir que autoridades brasileiras solicitem informações importantes para investigações diretamente às big techs que gerenciam as plataformas de redes sociais, cujos dados estão em provedores fora do Brasil. Isso poderá ser feito sem que o pedido passe pelo Ministério da Justiça, conferindo mais agilidade à devolutiva das solicitações. No entanto, especialistas ouvidos pelo ME avaliam que a decisão da Suprema Corte pode gerar insegurança jurídica ou violação de outros direitos fundamentais, como a proteção de dados, privacidade e liberdade de expressão.
Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, maior parque tecnológico urbano e aberto do Brasil, entende que é necessário saber quais são os limites da decisão da Suprema Corte, sobre quais autoridades e que tipo de informações poderão ser diretamente solicitadas às empresas de tecnologia. Ele teme, por exemplo, que dados pessoais armazenados em aplicativos e plataformas digitais sejam requeridos por qualquer autoridade, como juízes de primeira instância, por exemplo, de maneira indiscriminada.
Para justificar o receio, Pierre Lucena citou um caso ocorrido nos Estados Unidos em 2022, quando a histórica decisão Roe vs. Wade foi derrubada, permitindo que os estados criminalizem o aborto, o que levou muitas mulheres a deletar apps para acompanhamento do ciclo menstrual, tremendo que seus dados fossem solicitados pela Justiça como meio de provar um suposto aborto ilegal.
“O ponto-chave é garantir que informações íntimas e privadas das pessoas sejam mantidas, exceto em casos de repercussão geral, como uma tentativa de golpe. Uma coisa é o STF pedir informações, outra é um tribunal local pedir. É diferente. A gente precisa resguardar isso para casos de repercussão geral, não para casos individuais”, disse o presidente do parque tecnológico.
Especialistas comentam decisão do STF
Yuri Herculano, advogado criminalista especialista em Direito e Processo Penal, e em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra-Portugal, explica que a decisão da Suprema Corte vale, em tese, para a investigação de qualquer tipo de crime e pode requisitar a quebra do sigilo de informações sensíveis, caso elas sejam importantes para o andamento das investigações.
“A medida pode ser benéfica. Já tendo uma investigação em curso, vai ser feita a solicitação de informações que anteriormente deveria ser via diplomacia. A decisão judicial já existe, a flexibilização de direitos já tramitou, é só a requisição [de informações]. Há um óbice, por ser em outro país, e um óbice burocrático que está sendo suplantado, mas não suprimindo algum direito, já que todos os outros requisitos devem ser cumpridos”, afirmou o sócio do escritório Herculano & Ribeiro Advocacia.
Já advogada Ana Paula Canto De Lima, do escritório Canto de Lima Advocacia, argumenta que quando se trata de crimes cibernéticos, as provas são fácil e rapidamente apagadas – não apenas por usuários das plataformas de redes sociais, mas pelas próprias empresas de tecnologia que as gerenciam. A advogada, que também é presidente da Comissão de Proteção de Dados da OAB/PE e da Comissão Nacional de Crimes Cibernéticos da ABCCRIM, além de professora, autora e coordenadora de obras jurídicas, explica que isso se deve a procedimentos de rotina. “A demora na solicitação e devolutiva pode fazer com que provas se percam, pois as grandes empresas vão apagando, de tempos em tempos, as informações de seus provedores. É preciso que a prova seja obtida em tempo hábil para a investigação”, diz a advogada, lembrando que o próprio ministro Alexandre de Mores diz que a carta rogatória e o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, o MLAT, no caso de companhias com sede nos Estados Unidos, funcionam bem com a maioria das requisições, mas não funcionam de forma adequada quando se direciona a grandes plataformas. “Fica um instrumento que não é efetivo quando a gente fala de grandes plataformas”, disse a advogada.
Ana Paula explica ainda que no que diz respeito ao choque entre o interesse público, a liberdade de expressão e privacidade do indivíduo, a busca pela elucidação dos crimes sempre deve prevalecer no Direito.
Liberdade de expressão
“A liberdade de expressão é constitucional, mas tem limites e consequências. Você pode ser processado por um excesso quando a pessoa não observa os limites legais para exercer sua liberdade de expressão. Sobre proteção de dados, o interesse público e coletivo está muito acima do interesse do indivíduo. Se o indivíduo que tiver seus dados expostos em eventual cooperação internacional, vai ser elucidado se ele está envolvido com o crime ou é inocente, poderá responder com o devido processo legal para ter o contraditório e a ampla defesa”, disse a presidente da Comissão de Proteção de Dados da OAB.
Para Ana Paula, é necessário ter em mente que “quando foi feito o MLAT não tínhamos o mesmo cenário que temos hoje na internet”, o que exige outros meios de ação por parte da Justiça para assegurar a qualidade das investigações em curso.
Por sua vez, a advogada, professora de Direito Cibernético e Ética Profissional desde 2001 e palestrante Carmina Hissa, explica que num primeiro momento, os inquéritos relativos à elucidação da prática de atos antidemocráticos e disseminação de fake news devem ser os mais impactados pela decisão do STF.
Na visão da mestranda em Direito das Relações Internacionais e da Integração pela UDE, em Montevideo, no Uruguai, “mudanças num acordo bilateral como o MLAT não devem ser feitas por meio de um entendimento do STF, sob a alegação de que não está funcionando bem, e que o sentido de ‘liberdade de expressão’ do Brasil é diferente do que se tem nos EUA. O compromisso de cooperação deve respeitar o devido processo legal que, nesse caso, prevê que será pelo Ministério da Justiça, através do DRCI”iz advogada. DRCI é a sigla para o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, órgão da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que exerce majoritariamente o papel de Autoridade Central para os acordos internacionais de que o Brasil faz parte.
Entenda o caso
Tudo começou em setembro de 2022, quando a Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro) moveu uma ação questionando os membros da Suprema Corte se as requisições de dados às big techs por autoridades deveriam necessariamente seguir procedimentos estabelecidos pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT).
O MLAT trata da obtenção de conteúdo de comunicação privada em provedores de internet sem sede no Brasil, determinando que esses pedidos deveriam passar pelo Ministério da Justiça, gerando demora para obter informações.
Os processos relativos ao MLAT, acordo entre Brasil e EUA para cooperação internacional, demoram de 6 meses a um ano e exigem trâmites e critérios para efetivar as solicitações. Já a requisição direta a plataformas sem representação legal no país agiliza e facilita a solicitação e devolutiva de informações importantes para investigações de crimes cibernéticos.
Na quinta-feira (23), o STF decidiu que autoridades brasileiras (juízes, Ministério Público e autoridades policiais) podem solicitar dados de usuários de plataformas digitais com sede no exterior diretamente, para dar celeridade a investigações criminais.
Antes que a discussão fosse retomada, Gilmar Mendes, ministro relator do caso, já anunciara seu voto, favorável à solicitação direta, por julgar que “nem sempre o procedimento de cartas rogatórias e o MLAT é eficiente”, citando como exemplo o caso do Telegram, suspenso no Brasil após ignorar diversos pedidos da Justiça.
“Se fossemos seguir somente o procedimento de cartas rogatórias, eu diria que estaríamos esperando até hoje [uma resposta do Telegram]. O Telegram começou na Rússia, migrou para a Europa, hoje a sede é em Dubai. E até então não tinha representação no território nacional”, disse Mendes
Alexandre de Moraes, ministro que relata das investigações sobre o ataque golpista de janeiro de 2023, acompanhou o relator e também apresentou voto favorável. Ele justificou sua decisão citando a cooperação direta entre as plataformas de redes sociais e o TSE, durante as eleições do ano passado, para retirar conteúdos falsos do ar. “É possível essa cooperação direta que auxilie a Justiça brasileira a poder produzir provas e responsabilizar aqueles que devem ser responsabilizados”, disse Moraes.
Leia também:
Carnaval do Recife recebeu 2,7 milhões de foliões, que injetaram R$ 2 bilhões na economia
Receita Federal apreende 14,8 toneladas de lixo importado em Suape
Caso da vaca louca no Pará leva à suspensão das exportações de carne para China