A descarbonização vai ser um dos pilares da neoindustrialização do País e vai passar transversalmente pelos mais diversos setores da indústria, mudando processos que usavam os derivados de petróleo, que serão substituídos gradualmente. E o Nordeste será o provedor de grande parte da energia que o Brasil precisará para se descarbonizar.
Sobre esse tema, o Movimento Econômico inicia a série de reportagens O Desafio da Neoindustrialização, com três matérias, a começar por esta que você lê agora. Nesta matéria, mostramos o impacto que a descarbonização provocará sobe o consumo das energias renováveis e também em outras cadeias produtivas que vão surgir, como a do hidrogênio verde.
Na segunda matéria, o texto fala sobre o avanço da descarbonização no setor automotivo e como isso trará oportunidades de negócios em toda a sua cadeia produtiva. E a terceira matéria da série mostrará outro pilar da neoindustrialização: a bioeconomia – a busca por ativos naturais que vão substituir os sintéticos, incluindo alguns que são derivados do petróleo.
A descarbonização vai ser um dos fatores que vai contribuir para a neoindustrialização do Brasil, que também vai contar com outros pilares como as energias renováveis, a bioeconomia, a economia circular, a transformação digital, além de estimular a economia de baixo carbono em todos os segmentos da indústria. E o Nordeste será o grande provedor da energia necessária para esse processo.
“A descarbonização da economia é a mais urgente por questão de sobrevivência, mas os outros pilares também trazem desafios e oportunidades para o Brasil dar um salto de desenvolvimento”, resume a gerente de Política Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Samantha Cunha, se referindo aos pilares citados acima.
Este processo de neoindustrialização está ocorrendo em vários lugares do mundo. E por vários motivos. Primeiro, as empresas e os países perceberam que a redução das emissões de carbono é uma tarefa que não pode mais ser adiada. No entanto, isso significa mudar um dos pilares no qual a economia se desenvolveu desde a segunda metade do século XIX: o petróleo e seus derivados, usados em vários processos industriais, resultando nos mais diversos produtos, incluindo os petroquímicos, – como os plásticos -, químicos, fertilizantes, combustíveis, entre outros.
“O hidrogênio renovável vai ser a virada da chave da descarbonização da economia, porque vamos sair, gradualmente, da molécula do petróleo e entrar na molécula do hidrogênio, capaz de fazer essa substituição. O hidrogênio é composto por 70% de energia e tem que ser renovável para ser verde. Qualquer política industrial vai passar pela discussão sobre a transição energética e a descarbonização”, cita a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (ABEEólica), Elbia Gannoum. A opinião dela é senso comum no meio industrial.
Hidrogênio será o vetor
E o hidrogênio verde não vai só ser um meio de obter energia limpa, principalmente para o Brasil que pode despontar como um grande produtor deste novo combustível, segundo alguns estudos que já apontam isso. “O hidrogênio verde será um vetor para os produtos verdes. Ele não é o fim. É uma etapa necessária para chegarmos nesses novos produtos sustentáveis, como fertilizantes, combustíveis verdes, incluindo o querosene de aviação sustentável, chamado SAF, o diesel verde, o metanol verde, entre outros subprodutos”, conta o diretor de Inovação e Tecnologia do Senai-PE, Oziel Alves.
Segundo Oziel, o hidrogênio verde vai gerar impacto na neoindustrialização de várias cadeias produtivas, que serão levadas a produzir itens que hoje não se fabricam no Brasil. “O segundo item que o Brasil mais importa é o querosene de aviação. Todo o metanol é importado, sendo um insumo para a indústria química de plásticos e polímeros. O mesmo vale para fertilizantes”, comenta Oziel. Estes produtos são derivados do petróleo.
Até processos industriais como os usados na fabricação do aço, do alumínio e do cimento usam carbono. O hidrogênio verde poderá substituir este carbono.
Um estudo divulgado, em junho último, pela consultoria alemã Think Tank afirmou que a siderurgia está se planejando para ter emissões zero de carbono na década de 2040. O Brasil é o segundo maior exportador de ferro do mundo. E os grandes compradores do mercado internacional vão começar a pressionar para que o minério exportado seja verde.
Nova commodity
Oziel argumenta que a tendência é o hidrogênio verde puro se transformar numa commodity para ser exportada. “A Europa vai querer hidrogênio verde até como insumo para gerar energia”, afirma, acrescentando que é necessário produzir os produtos finais para realmente desenvolver uma indústria verde em torno deste combustível.
O pensamento de Oziel é complementado pelo presidente do conselho temático do Meio Ambiente da Fiepe, Anísio Coelho: “O hidrogênio não pode ser uma nova soja. Não pode vender o produto básico, tem que agregar valor aqui. Vender o aço verde, o fertilizante nitrogenado verde. É uma grande oportunidade para o Nordeste alavancar o seu desenvolvimento”.
NE será provedor da descarbonização
O Brasil vai ter que aumentar a produção de energia renovável para entrar na produção em larga escala do hidrogênio verde. “Em média, há um aumento de 4 gigawatss (GW) instalados de energia eólica por ano. Com a produção de hidrogênio verde e a descarbonização (da economia), a expectativa é de que sejam implantados 8 GW ao ano. O Nordeste vai ser o maior provedor de descarbonização no Brasil, porque a região tem o maior potencial para renováveis como eólica, solar, e eólica off shore”, diz Elbia Gannoum.
Somente as eólicas off shore podem ampliar em 3,6 vezes a capacidade instalada no Brasil de gerar energia, segundo um levantamento feito pela CNI. “O importante é transformar as vantagens comparativas em competitivas. Vê o que o Estado tem de importante para atrair indústrias, parques eólicos e solares. É importante cada Estado fazer a sua política industrial, destacar os pontos atrativos e se tiver que consertar alguma coisa, que o faça”, comenta Elbia. E aconselha: “É importante ter um olhar estratégico e planejamento”.
Ela argumenta que os grandes investidores estão vendo oportunidades parecidas em vários países do mundo e que o Brasil deveria, no máximo, dentro de um ano e meio aprovar todos os marcos regulatórios envolvendo as energias renováveis, inclusive o do hidrogênio, o das eólica off shore e o do mercado de carbono para não perder este bonde.
A produção de hidrogênio verde também vai demandar a fabricação de eletrolisadores, purificadores de água, purificadores de hidrogênio, entre outros equipamentos. Atualmente, só há uma fábrica de eletrolisador no Brasil que foi comprada por uma empresa europeia. Do mesmo modo que a expansão das eólicas, também vai requerer mais equipamentos e serviços.
Rota pernambucana de descarbonização
O Senai-PE está instalando um Techhub para desenvolver projetos pilotos e pesquisas relacionadas ao hidrogênio verde no Porto de Suape. “ A rota da descarbonização em Pernambuco leva em consideração o setor sucroalcooleiro, a capacidade de biomassa, da fruticultura e dos resíduos sólidos”, comenta Oziel. Um dos subprodutos do setor sucroalcooleiro é a biomassa (o bagaço da cana-de-açúcar). O Nordeste é um grande produtor de açúcar e álcool.
“A rota pernambucana também pode aproveitar o CO2 produzido pelas usinas”, comenta o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (Fiepe), Ricardo Essinger, que acredita que vai ocorrer uma neoindustrialização, mas lembra que o crescimento da indústria também depende de outros fatores como redução do custo dos impostos, melhorias na infraestrutura e mais acesso ao crédito, entre outros.
Ainda na rota de descarbonização, Oziel cita como exemplo um hidrogênio que pode ser feito a partir da biomassa, que se transformaria em biogás, depois em biometano e, por último, em hidrogênio verde. “Neste processo pode se produzir até o carbono biogênico, que vem de uma fonte limpa. E, que teoricamente, veio de uma biomassa que tirou mais carbono da atmosfera do que a queima dele”, explica Oziel.
Segundo o presidente do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Pernambuco, Renato Cunha, é importante as empresas terem metas verdes a serem cumpridas. “Há várias etapas a serem cumpridas na descarbonização. A transição energética é uma oportunidade que está aí, mas só se investe quando se tem uma segurança regulatória”, comenta. O etanol pode ser também uma das estrelas nesta rota da descarbonização.
“É preciso que a indústria aumente a sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) do País”, fala Renato. A indústria brasileira passou por um processo precoce de desindustrialização, com o setor perdendo importância do PIB numa proporção maior do que os outros países de renda média. Para o leitor ter ideia, a indústria tinha uma participação de 48% do PIB em 1980, dos quais 35,9% era a participação da indústria de transformação, segundo a CNI.
Atualmente, a indústria tem uma participação de 23,9% do PIB, sendo que 12,9% é a participação da indústria de transformação. “A indústria tem ligação para frente e para trás na cadeia produtiva, porque compra e vende para outros setores. É a atividade que tem mais poder de puxar o desenvolvimento econômico. Um real empregado na indústria traz um impacto de R$ 2,44 na economia como um todo”, revela Samantha Cunha.
Caminho inverso da globalização
O processo de definição da neoindustrialização também foi impactado pelos vestígios deixados pela covid-19 na área industrial. “Depois da pandemia, os países começaram a ver as vulnerabilidades que existiam na cadeia de valor. A crise sanitária deixou evidente as fraturas que já existiam. Faltaram suprimentos na indústria e suprimentos para combater a pandemia”, conta Samantha. Com isso, ficou mais claro que ocorreu uma concentração da produção de uma parte da indústria em poucos países.
Somente como exemplo: apenas cinco países (China, Taiwan, Singapura, Coréia do Sul e Malásia) respondem por 75% das exportações globais de semicondutores (chips) e circuitos integrados; a China responde por quase metade (47,6%) das exportações de equipamentos de telecomunicações e, respectivamente, mais da metade de computadores (53,1%) e telefones celulares (60%), de acordo com o Plano de Retomada da Indústria da CNI.
Como forma de reagir aos números acima, os Estados Unidos e países da Europa lançaram planos bilionários para fortalecer as suas indústrias e fazer a descarbonização das suas economias, incluindo a fabricação de semicondutores, incentivos para fontes renováveis, incluindo o hidrogênio verde, e até a fabricação de carros elétricos.
Incentivo à energia renovável
Em toda a indústria, estão ocorrendo dois movimentos agora: o nearshoring e o powershoring. O primeiro significa que uma parte da indústria está se deslocando para se instalar perto dos mercados consumidores. E o segundo, que alguns empreendimentos industriais vão se implantar onde for mais fácil fazer a descarbonização dos seus processos produtivos. E, para descarbonizar, essas empresas vão ter que usar mais energia renovável, como a eólica ou a solar fotovoltaica ou, no futuro, o hidrogênio verde.
Para Samantha, o Brasil tem que se preparar para atrair indústrias intensivas no uso da energia e criar as condições para os investidores optarem pelo País. “Também é preciso estabelecer incentivos para a produção das energias renováveis e das manufaturas verdes, como o aço verde, o combustível para aviação verde (o SAF), e o hidrogênio verde”, conclui Samantha.
Ela também diz que o cenário está positivo para neoindustrialização porque tanto o governo federal como a CNI estão afinados apontando para uma direção comum. A CNI vai lançar um projeto de política industrial em dezembro, incluindo diretrizes na área de descarbonização, energias renováveis, bioeconomia, entre outros. A intenção é divulgar a política industrial junto com informações de várias linhas de crédito por parte dos órgãos estatais – que incluem o BNDES, o BNB, a Finep – que podem apoiar e ajudar os novos projetos da indústria a saírem do papel.
Leia a série completa O Desafio da Neoindustrialização:
Neoindustrialização do Brasil vai passar pela energia renovável do Nordeste
No Nordeste, setor automotivo sai na frente na corrida pela neoindustrialização