O Supremo Tribunal Federal (STF) tem nas mãos aquele que vem sendo considerado o mais taxativo conjunto de elementos para a tomada de decisão sobre uma disputa territorial entre Piauí e Ceará que se arrasta há dois séculos. O Exército encaminhou à corte, no fim da semana passada, uma perícia em que aponta possíveis saídas para o litígio, que envolve uma área de 2,8 mil quilômetros quadrados na região da Serra da Ibiapaba, afetando 25 mil pessoas.
As procuradorias-gerais dos dois estados, contudo, veem de forma diferente o relatório e insistem na tese de que o documento reforça seus pontos de vista. Como a fase seguinte do processo é a manifestação de cada estado sobre o laudo entregue pelos militares, já há o indicativo de que a discussão deve ter margem para mais contestações, mantendo incertezas entre os moradores dos 13 municípios cearenses e dos nove piauienses envolvidos na disputa.
Essas múltiplas interpretações podem ter se acentuado porque a perícia indicou cinco soluções, todas com nuances que, a depender de quem lê, avalizam ou descredibilizam argumentos de ambos os lados. Mapas antigos usados no Brasil Império para definir as divisas dos dois estados foram acostados ao processo, que tramita no STF desde 2011, como argumento do Piauí, estado autor da ação, para reivindicar o território. Já o Ceará aposta na ocupação humana e no senso de pertencimento para sustentar a manutenção do atual traçado.
Perícia do Exército apontou cinco saídas para litígio
A primeira possibilidade indicada na perícia é a de que o divisor de águas da Serra da Ibiapaba seja considerado na partilha de território, o que faria com que uma parte menor do que hoje é Piauí passasse para terras cearenses e que uma parcela maior do território do Ceará se tornasse piauiense. Um segundo método seria o traçado de uma linha no centro das áreas de litígio, o que, para o Exército, não seria adequado porque não viria a garantir uma divisão equitativa de edificações e de quantitativo populacional entre os dois estados.
Já a terceira possibilidade seria a entrega de toda a área de litígio para o Piauí, tomando como referência a linha que delimita a borda leste da região. A quarta possibilidade seria a contrária, ou seja, que a borda oeste fosse tomada como base e todo o território disputado ficasse com o Ceará. Essas duas metodologias, porém, não foram recomendadas pelos peritos, uma vez que infringiriam o Decreto Imperial 3012, de 1880, que usa como referência o divisor de águas da Serra da Ibiapaba para separar regiões específicas na divisa desses estados.
O quinto método seria o uso da linha imaginária adotada como referência pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com isso, a maior parte da Serra de Ibiapaba seria mantida no Ceará, como é hoje, e ainda seriam acrescidos àquele estado 2,6 mil quilômetros quadrados. Já o Piauí receberia 713 quilômetros quadrados.
Como a mudança seria relativa apenas ao formato do traçado, que passa, sobretudo, pela zona rural, nenhum estado teria perda populacional ou de edificações, o que, conforme o Exército, faz dessa a possibilidade “que menos afetaria os estados”. Os peritos ressalvaram, porém, que não cabe ao IBGE estabelecer limites territoriais, o que abre espaço para que o Piauí descredencie o uso desse balizador no âmbito da decisão a ser tomada pelo STF.
Procuradorias têm interpretações distintas sobre teor de perícia
Para a Procuradoria-Geral do Piauí (PGE-PI), o Exército “confirmou a tese piauiense de que a Serra da Ibiapaba está totalmente em território” do estado e que, portanto, “o Piauí tem direito ao dobro do que pediu no processo, pois o Estado do Piauí receberia uma área ocupada pelo Ceará de 6.162 km²”.
O órgão ainda ressaltou que a perícia considerou o Decreto Imperial 3012 como “elemento-chave para o litígio territorial entre os dois estados, tese defendida pelo Piauí na ação do STF” e afastou “as sustentações defendidas pelo Ceará de que os limites definidos pelo IBGE seriam aplicáveis ao caso”. “A decisão do STF enfatiza a importância de documentos históricos, critérios legais, cartográficos e marcos naturais na determinação dos limites territoriais”, afirmou a PGE piauiense.
Já a PGE do Ceará disse que o laudo pericial “é categórico” em afirmar que “a divisa não decorre do divisor de águas, mas da porção oeste da Serra da Ibiapaba (tese defendida pelo Ceará)”, uma vez que a representação dessa região “foi aprimorada ao longo do tempo” e que, “devido a simplificações inerentes à escala, à representação iconográfica da Serra da Ibiapaba, à variação da posição relativa de feições, à variação da orientação e/ou forma de rios em relação à divisa e à ausência da representação de algumas serras, morros e localidades, não há como definir uma linha exata entre os dois estados”.
O Ceará afirmou ainda que ficou constatado que “a divisa entre os estados corresponde àquela praticada pelo IBGE” e que, por isso, entende que o resultado da perícia “corrobora os argumentos e elementos apresentados pelo estado”, “reforçando a importância do aspecto humano como norte para a solução do litígio”.
Passo seguinte é manifestação de PI e CE perante o STF
Os 13 municípios cearenses afetados pelo imbróglio são Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús. Já no Piauí, estão na lista nove municípios: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Milton Brandão, Pedro II, Buriti dos Montes, Piracuruca, São Miguel do Tapuio.
A perícia foi solicitada pelo STF. O Exército tinha até maio para entregá-la, mas o resultado só veio à tona na semana passada. Apesar de a conclusão da perícia ser vista como passo fundamental, o processo ainda não tem perspectiva de um desfecho, uma vez que serão abertos prazos para que cada uma das partes se manifeste sobre o laudo. No STF, o caso tem relatoria da ministra Carmen Lúcia.
Pernambuco também perdeu território nos tempos da colônia e do império
Não é o primeiro caso de ameaça ou perda de território em estados do Nordeste que remonta aos tempos do Brasil Colônia ou Brasil Império. Pagando o preço pelos constantes movimentos libertários que sediou, Pernambuco perdeu, em 1817, a região onde hoje fica Alagoas. Em 1824, a margem esquerda do Rio Francisco passou para Minas Gerais e, em seguida, para a Bahia, como é atualmente.
Dentro do próprio estado, nos últimos anos, a agência Condepe/Fidem, ligada ao Governo de Pernambuco, chegou a contabilizar 100 casos de litígios entre municípios por conta de limites territoriais que vieram à tona após a verificação de inconsistências por ferramentas de georreferenciamento e outras tecnologias usadas na atualização cartográfica do estado.
Somente no ano passado, a Comissão de Assuntos Municipais da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), que participou da intermediação de acordos juntamente com a Associação Municipalista de Pernambuco (Amupe), anunciou a resolução de 24 pontos de litígio, a maioria no Agreste Setentrional e no Sertão do Pajeú. Os prefeitos dos municípios afetados alegam o risco de perdas para a economia e para a infraestrutura devido aos equipamentos públicos já erguidos e às atividades produtivas desenvolvidas nas áreas disputadas.
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