Por Francisco Martins*
O desenho original da Ferrovia Transnordestina desde os conceitos lançados por Dom Pedro II, em 1847, até o primeiro projeto desenvolvido pelos irmãos Mornay em 1852, ligava a então Vila de Santa Maria (hoje Santa Maria da Boa Vista) ao Porto do Recife. Esse conceito da união entre as áreas mais ocidentais do Nordeste e um porto pernambucano resistiu até os anos 2000, com o lançamento da chamada Nova Transnordestina, como o tal “L invertido”, tendo o Porto de Pecém, que na época da assinatura do contrato da concessao não passava de uma praia deserta, como uma variante do projeto original.
Pois bem. De 1997, quando a CFN arrematou a concessão por 30 anos, em diante, uma sucessão de atrasos, retomadas fugazes, descompassos de orçamentos se sucederam, até que incompatibilidades entre liberação e aplicações de recursos levaram o TCU a emitir em 2017 o Acórdão que vetou o repasse de dinheiro público para a obra, um necessário freio de arrumação.
Em 2019 veio a recomendação pela caducidade do contrato de concessão pela Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, atestando veementemente a incapacidade da concessionária em cumprir com as suas responsabilidades. O bode do bizarro contrato de concessão entrou na sala carregando o chocalho do acórdão do TCU e a recomendação da caducidade do contrato.
Acuada, a concessionária anunciou uma simbólica retomada de investimentos próprios excluindo a retomada do trecho Salgueiro – Suape, justamente o mais avançado e menos extenso dos dois ramais da ferrovia. Não por acaso, poucas semanas antes do anúncio, a concessionária (via FTL) aterrorizou comunidades que se instalaram na faixa de domínio dos trechos urbanos onde nunca mais passará um trem em Palmares, Ribeirão e Escada. A legítima reação das comunidades com o apoio da Igreja Católica serviu como o risível argumento para a não retomada das obras em Pernambuco.
Em 2020, o Ministério da Infraestrutura incumbiu a VALEC de contratar um estudo que indicaria soluções para o imbróglio do bode na sala. Depois de meses de trabalho os resultados foram guardados a sete chaves pois mostraram o óbvio: o Ramal Suape tem incontáveis vantagens sobre o “L invertido” de Pecém.
Ferrovia que dá retorno
Como alternativa de escoamento das cargas vindas do Piauí, Pecém não amarra nem as chuteiras de Suape, como facilmente enxergou a BEMISA, a dona da carga de minério de ferro, ao obter a autorização para construir um ramal entre a mina e Suape, e ao assinar o contrato para implantar um terminal de exportação do minério de ferro por 30 anos em Suape, indiscutivelmente o mais dinâmico complexo industrial portuário do país.
Apesar disso tudo, no apagar das luzes do Governo Bolsonaro em putrefação, o TCU retrocede, e para constrangimento geral do corpo técnico da ANTT, um termo aditivo ao contrato da TLSA é imposto e firmado, excluindo o Ramal Suape da concessão, deixando-o literalmente pendurado no pincel, ignorando as décadas de artimanhas e desrespeito da concessionária com os pagadores de impostos. Isso sem falar que, em 2013, o contrato original já havia sido violentado com a cisão das responsabilidades deixando a malha antiga com uma concessionária natimorta, a FTL, a quem coube o osso, livrando a TLSA da responsabilidade pelo passivo da deterioração irresponsável desse ativo do povo nordestino, refletido, por exemplo, nas favelas lineares da Avenida Sul.
O conjunto de manobras pode ser chamado de um duplo mortal encarpado com a qual o bode não só ocupou a sala como a transformou em um aprisco de luxo, repleto das bolinhas de fezes deixadas ao longo de décadas pela mais estrambólica concessão de todos os tempos.
Mas que se faça do bode uma buchada sertaneja. A saída para Pernambuco passa pela “ferrovia da Bemisa”, a EF233, ou Ferrovia do Sertão, quer seja pela autorização da qual já é detentora, ou ainda pela regulamentação da Lei Estadual que permite a construção de ramais ferroviários por autorização do Governo do Estado. Existe ainda a alternativa de a ANTT fazer uma chamada pública para quem quer garantir a carga, processo mais célere. Isso feito, Suape nadará de braçada, escoando minério de ferro, gesso do Araripe, frutas do São Francisco, e quem sabe, grãos do MATOPIBA, e despachando para o interior, ao custo reduzido do modal ferroviário, combustíveis, gás, veículos, carga conteinerizada, com impacto direto no custo de vida da população nordestina.
*Francisco Martins é engenheiro, consultor sênior, foi Diretor de Planejamento e Diretor Presidente de Suape, e há pouco mais de quatro anos foi o gestor do projeto da conexão ferroviária de Suape.
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