Alguns carros da marca Alfa Romeo fabricados na Itália, ou o Jeep Grand Cherokee que chega dos Estados Unidos – independente do País onde são produzidos – utilizam algo em comum que foi criado, desenvolvido e validado no Bairro do Recife. São as aplicações (de software) feitas no único Software Center da Stellantis na América do Sul, instalado num antigo casarão da Rua do Apolo, no bairro que deu origem à capital pernambucana e concentra do Porto Digital. O centro, que é responsável por 80% de todos os softwares de propulsão de combustão interna utilizados pela Stellantis, também está expandindo sua competência para veículos eletrificados.
“Atualmente, os veículos têm muita eletrônica embarcada e o software está presente em quase todo o carro. Já foram mais de cinco milhões de linhas de códigos desenvolvidas e mais de 550 aplicações incluindo suas variantes nos mais diversos veículos”, resume o líder do time de validação do Software Center da Stellantis, Fábio Lima. O centro de tecnologia recifense especializou-se em fazer software de motor e transmissão. O motor e a transmissão ditam o ritmo da força e da velocidade, resultando na propulsão do veículo.
Os softwares que saem do Bairro do Recife são usados por veículos nos Estados Unidos, alguns países da Europa e, na América do Sul, em várias das 14 marcas da Stellantis, também proprietária do Polo Automotivo de Goiana, na Mata Norte de Pernambuco. “Fomos focando nas nossas demandas, encontrando oportunidades e mostrando nossa capacidade técnica. Fomos fornecendo serviços, ganhando a confiança interna e externa”, lembra Fábio, referindo-se ao processo de crescimento do centro.
Simuladores
O Software Center da Stellantis começou com 20 pessoas e poucos simuladores em 2015. Inicialmente, a estrutura do centro foi implantada para oferecer soluções para as plantas de Goiana e Betim (MG). Hoje, atende às cinco fábricas que a companhia possui na América do Sul, que incluem ainda uma em Porto Real, no Rio de Janeiro e outras duas plantas na Argentina, uma em Córdoba e outra em Palomar.
O local possui diversos simuladores, incluindo alguns que testam os carro que serão eletrificados. Os simuladores – como o nome diz – são usados para testar o software das centrais embarcadas, apresentando o mesmo comportamento dos veículos. “O simulador é ajustável, se adapta aos vários tipos de veículos, atualizando as peças. Eles podem também ser usados, remotamente, por equipes que estão nos Estados Unidos e países da Europa”, conta Fábio. E acrescenta: “Hoje, estamos desenvolvendo os softwares de motores e transmissões de 2025 e 2026 e já falando em 2027. O volume de conteúdo é grande. Tem que começar antes para trazer robustez ao processo”.
São 150 pessoas que trabalham no Software Center. “Temos colaboradores que, ao concluir a graduação, nem imaginavam que poderiam trabalhar com desenvolvimento de software automotivo no Recife”, afirma Fábio. É o caso do paraibano José Henrique Silva de Oliveira, 31 anos, que concluiu a sua graduação em engenharia elétrica na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa.
“Não tinha ideia de onde ficaria assim que acabei a graduação. Nem imaginava que ia trabalhar com software automotivo. Abracei a primeira oportunidade que apareceu, uma residência no Cesar School na área de engenharia automotiva em parceria com a empresa no Recife”, lembra José Henrique, que completou, em outubro, oito anos de contratado pela companhia.
José começou fazendo três meses de residência no Recife. Ao concluir este período, foi contratado. Depois disso, morou em Recife, João Pessoa, em Turim, na Itália, onde fez um treinamento na área de software automotivo. “Me identifiquei e me achei aqui. Viajei pra fora do País a trabalho, aprendi italiano. Descobri um mundo que não sabia que existia. A complexidade é enorme nesta área de software. E engenheiro gosta de dificuldade”, comenta. Atualmente, ele mora em João Pessoa, trabalha em home office, e vem ao Recife “sob demanda”.
Do total de pessoas que trabalham no Software Center, 66% são de profissionais que vieram de Pernambuco e da Paraíba. E 67% têm abaixo de 30 anos. “Este percentual já foi mais alto. Isso significa que os talentos estão ficando conosco”, argumenta Fábio, um recifense que foi fazer um programa de trainee na fábrica de Betim, em Minas Gerais, e acabou ficando por lá. Voltou a morar no Recife, em 2018, para trabalhar no Software Center, fazendo o caminho inverso de milhares de brasileiros, que saem do Nordeste em busca de melhores oportunidades no Sudeste.
Investimentos no Software Center
Foram mais de R$ 35 milhões investidos no Software Center desde 2015, sendo R$ 30 milhões na estrutura que incluiu máquinas, equipamentos, simuladores e licenciamento de softwares. Também foram empregados mais de R$ 5 milhões em capacitações, treinamentos e projetos desenvolvidos em parcerias com universidades, como a UFPE, UFCG, de Campina Grande; UFPB, da Paraíba, e a Universidade de Pernambuco (UPE). “É um nicho que dá resultado. Fomos a primeira fábrica do grupo na região. E ter profissionais qualificados nesta área em engenharia era um grande desafio”, comenta Fábio.
O empreendimento não poderia ter se instalado num local mais propício: o Porto Digital, um parque tecnológico que se instalou no Bairro do Recife, há mais de duas décadas, e que tem foco em atividades digitais e desenvolvimento de software. O ambiente é formado por 350 empresas nas quais atuam 17 mil funcionários.
Aliás, o Porto Digital também tem ligação com a escolha do Recife para receber o Software Center da Stellantis na América do Sul. “Na época, trabalhava nos Estados Unidos. O meu chefe americano perguntou: o que o pessoal lá de Pernambuco sabe fazer? Porque vamos fazer um investimento lá… Respondi: Não sei”, lembra João Irineu Medeiros. O resultado da conversa foi que ele acabou vindo ao Estado para descobrir.
Durante a visita, recorda ele, “o que mais me chamou a atenção, foi ver o pessoal do Centro de Informática conectado com a Motorola e a Samsung, discutindo fazer software para usar no celular. Pensei: o pessoal aqui entende de software. Depois disso, fomos no Cesar, no Porto Digital e percebemos um ecossistema fértil para receber um centro de software”. Foi assim que nasceu a primeira indicação para o empreendimento ficar no Recife.
Além de responsável pelo desenvolvimento de soluções de desenvolvimento e validação de softwares de propulsão, o centro também atua nas áreas de engenharia virtual, qualidade de software, processo e ferramentais, entre outras atividades.
E alguns dos projetos que utilizam o software globalmente são o Jeep Grand Cherokee, Jeep Wrangler, Chrysler Pacifica, Dodge Durango, Dodge Hornet, RAM 1500, entre outros. Na América do Sul, os softwares estão no Jeep Renegade, Jeep Compass, Jeep Commander, Fiat Toro, RAM Rampage, entre outros.
Stellantis abre espaço para mulheres
A engenheira paraibana Isabelle Maia é uma das coordenadoras do time de desenvolvimento de software no centro de tecnologia da Stellantis, no Recife. Ela chefia uma equipe de 23 pessoas que tem 24% de mulheres. “Estamos mudando esta realidade. A empresa faz alguns programas neste sentido”, conta. A Stellantis desenvolve um programa para que mais mulheres ocupem a liderança nas suas equipes.
No entanto, o mundo na área das engenharias e da tecnologia ainda é um ambiente bastante masculino. “Em vários cursos da universidade, era a única mulher da turma”, diz Isabelle, acrescentando que trabalhando “na área, nunca sentiu nada diferente por ser mulher. Não percebi preconceito, nem ninguém duvidando da minha capacidade por ser mulher”.
Há seis anos na empresa, o contato dela com a Stellantis começou quando Isabelle estava cursando um mestrado na Universidade Federal de Campina Grande. Ela e outros cinco estudantes foram selecionados para um programa de trainee de desenvolvimento de software de propulsão no centro de tecnologia da empresa em Auburn Hills – Michigan, EUA – em parceria com a Universidade de Oakland e a Stellantis. “Durante sete meses, participei de um treinamento no processo de desenvolvimento de software e ferramentas utilizadas pela empresa e, ao mesmo tempo, como parte desse programa, tínhamos disciplinas de mestrado na universidade americana. Fui lá para aprender”, lembra.
Depois do treinamento, ocorreu a contratação e Isabelle morou no Recife por dois anos. O time dela trabalha em regime de home office com idas pontuais ao escritório no Recife. Com a nova configuração de trabalho, ela voltou a morar em João Pessoa, casou-se e está grávida de seis meses.
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