* Artigo escrito por Giuliana Gobbetti
Hoje em dia, mais do que nunca, sinto que as questões ideológicas entre esquerda e direita estão em voga. O Brasil passou pela eleição mais acirrada da história do país, com uma margem de pouco mais de dois milhões de votos para o ganhador. As urnas revelaram um Brasil rachado literalmente ao meio com um confronto claro entre direita e esquerda. Não quero discutir sobre a situação brasileira, mas me permiti trazer esse contexto para ampliar o debate. Inserida nesta polarização brasileira, políticas conservadoras, liberais e comunistas foram às pautas dos últimos tempos, e diversas vezes me deparei com provocações ao modelo liberal utilizando o modelo chinês como contraponto. A narrativa é que o capitalismo liberal está fadado ao fracasso, afinal a China, um país comunista desde 1949 se tornou a segunda maior potência do mundo. Será que este modelo de fato traz aprendizados e questionamentos aos modelos liberais?
Se olharmos friamente os dados econômicos da China, esta tese parece fazer sentido. A economia da China disparou em uma toada de crescimento nos últimos anos, em 2021 o Produto Interno Bruto fechou em 17 tri USD superado apenas pelos Estados Unidos com 23 Tri USD¹. De 2017 a 2019, a China teve a maior representação no crescimento do Pib Global, com 35,2% . EUA representou 17,9%.¹ A velocidade como a China cresceu também foi impressionante, sendo necessário 30 anos para multiplicar o PIB por 36. Os Estados Unidos, por sua vez, demorou 117 anos¹. 3,9x é quanto o “tempo” anda mais rápido na China moderna do que nos Estados Unidos.
Para entendermos as alavancas de crescimento chinês, é importante entender brevemente a história da China. A China é marcada por três grandes períodos. No período imperial (911 a.C. a 1911 d.C), a China era um país importante com relevante participação no comércio de especiarias, seda, porcelana, entre outros. A guinada da estagnação econômica começa na revolução industrial. A China não participa da revolução e fica muito aquém das outras economias mundiais, atrasada em relação a inovação, tecnologia e industrialização. O segundo momento é a República da China (1911-1949), considerada o hiato econômico ou século da humilhação, a China não consegue rever a situação e se encontra em uma pobreza extrema. São nessas condições que o Mao Tse Tung toma o poder em 1949 implementando ideais comunistas. Seu governo foi marcado por dois principais movimentos comunistas: O Grande Salto e a Revolução Cultural Chinesa. Contudo, a guinada de crescimento econômico se inicia com o seu sucessor, Deng Xao Ping em 1976. Deng teve seu governo marcado entre outras coisas pela abertura econômica, investimento do exterior, incentivos fiscais e liberalização do sistema de formação de preços.
Olhando os feitos acima, nos resta questionarmos: Mas afinal a China é de fato comunista?
Se olharmos no âmbito político, definitivamente sim. O país ainda é governado por uma única força, o Partido Comunista da China, que opera de forma centralizada. Não há liberdade de imprensa e o setor de mídia é controlado pelo Estado, vivendo uma das maiores censuras do mundo com a população não tendo acesso a plataformas como youtube, twitter, facebook e instagram. No âmbito econômico, nem tanto. Concordo com o Kelsey Broderick , especializado em China da consultoria Eurasia Group, que afirmou que Economicamente, a China está hoje mais próxima do capitalismo do que do comunismo“²,
As medidas fundamentais para o crescimento do país foram tomadas em um governo que pregou a Liberalização do Comércio Exterior. A China se torna o maior parceiro econômico do Brasil e de várias outras economias do mundo. A abertura ao exterior resultou em uma forte elevação das exportações, que saltaram de 5% do PIB na década de 1970 para mais de 30% na década de 2000, com pico de 39% em 2006. Em 2009 o país ultrapassou a Alemanha como o maior exportador mundial de manufaturas. ³
O governo também implementou a liberalização Econômica com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) para trazerem empresas do exterior, gerando além de inteligência industrial, emprego para as pessoas. O maior laboratório da Microsoft fora dos Estados Unidos fica na China. Com fortes incentivos fiscais (ou seja, baixa tributação), um potencial mercado consumidor grande e uma infraestrutura boa, as empresas tinham os estímulos perfeitos para se instalarem na china. Este movimento trouxe uma autonomia tecnológica com forte estímulo à indústria nacional.
Vale reforçar que a economia não é de todo liberal, o governo intervém fortemente nas empresas a exemplo das retaliações ao Alibaba após críticas contra o governo feitas por Jack Ma. O Estado controla o sistema bancário e tem gastos massivos com infraestrutura. Aliás, uma das principais alavancas de crescimento do PIB chinês são os gastos massivos com infraestrutura e no setor de construção civil. Estima-se que o setor imobiliário represente de 20% a 40% do PIB. O governo canalizou o crédito para o setor imobiliário com o objetivo de atingir as altas médias de crescimento do PIB com forte expansão do crédito. No final de 2021, no entanto, estamos acompanhando o estouro dessa bolha. Como bem definiu a matéria da Reuters, Chinese developers in survival mode, slash property investment, as incorporadoras da China estão em modo de sobrevivência e fazendo drásticos cortes em investimentos. Foi avaliado pela Bloomberg uma possível perda de 350 bilhões de dólares com a crise. Para entendermos o tamanho da desaceleração, a queda da receita das incorporadoras em relação à 2021 chegou a 45% para a Country Garden, 78% para a Sunac e 93% para a Evergrande. A S&P espera mais inadimplências em 2022, com até um terço dos incorporadores chineses tendo problemas de caixa. Além de esperar que as vendas de imóveis residenciais na China caiam 10% neste ano e mais 5% a 10% em 2023.
A guinada liberal foi importante para o desenvolvimento da China, porém resta nos questionar se a toada de crescimento baseada neste modelo é sustentável. Até quanto a mão “visível do governo” limita o crescimento do país nos próximos anos? Já acompanhamos várias revisões e achatamento do crescimento do seu PIB, além do estouro da bolha imobiliária. Mais importante que a avaliação da longevidade do modelo econômico chinês, fica o questionamento: a que preço?
* Giuliana Gobbetti é graduada em Administração pelo Insper. Com 7 anos de experiência no mercado financeiro, é também gerente do Instituto de Formação de Líderes.
Leia também: A decadência ocidental e suas implicações políticas e intelectuais