Segundo o geógrafo e professor Milton Santos*, a desigualdade de renda e a consequente dificuldade de acesso ao consumo e aos bens e serviços considerados essenciais, propiciam o surgimento de dois circuitos de produção, distribuição e consumo da sociedade: um circuito superior com “uma minoria com rendas muito elevadas, que podem ter acesso de maneira permanente aos bens e serviços oferecidos”; e um circuito inferior com “pessoas com salários muito baixos ou vivendo de atividades ocasionais, com acesso limitado aos serviços públicos” (O espaço dividido: Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1979).
A metrópole do Recife chega no século XXI, reforçando sua vocação terciária, mas, também, o ressurgimento de sua indústria, desta feita, impulsionada pelo Complexo Industrial e Portuário de Suape. Ressalta-se, também – em meio ao movimento cíclico a que foi submetido (momento de boom econômico seguido de crise econômica nacional e o esvaziamento de políticas públicas) seu perfil mais traumático, ao se observar oportunidades que surgem ligadas à atividades produtivas, com nichos de modernidade e alto padrão de renda; ao mesmo tempo, que afloram fragilidades recorrentes de atividades com baixa produtividade, baixo padrão de renda, elevada informalidade e desemprego.
Do ponto de vista da espacialidade da economia, apesar da perda de peso relativo do município do Recife, a Região Metropolitana do Recife (RMR) se caracteriza ainda por uma grande desigualdade de sua base econômica, expressa na concentrada mancha urbana e no eixo litorâneo; ao mesmo tempo que registra um vazio econômico e relativa estagnação a Oeste. Fato que ficou ainda mais evidente com a conformação do Complexo Industrial-Portuário de Suape.
Considerando a distribuição do PIB entre os municípios da RMR e a taxa média anual de crescimento do PIB dos municípios que integram a metrópole, no período 2004 a 2019 (IBGE), observa-se, de um lado, perdas na participação do Recife de 58,8% para 48,7% e de Olinda de 5,9% para 5,1%, com taxas médias anuais, respectivamente, de 0,5% ao ano. e 0,8% ao ano. De outro lado, no caso de Ipojuca, a alteração, em 15 anos, de 3,9% para 11,3%; embalado pelo dinamismo de Suape, com impressionante taxa média anual de crescimento de 9,2%.
No tocante ao PIB per capita, registra-se um incremento na metrópole de R$16,2 mil para R$20,7 mil, entre 2004 e 2019 (IBGE), considerando os preços de 2019. Nota-se nitidamente os efeitos de Suape sobre Ipojuca, que salta no mesmo período, de um PIB per capita de R$ 50,9 mil para R$132,2 mil. Pode se dizer que efeito parecido ocorreu com Itapissuma, que apresentou um aumento de R$44,6 mil para R$ 69,4 mil, pelo impulso da indústria, sobretudo de bebidas. Recife, por sua vez, teve discreta queda neste período, mas, pode-se dizer que mantém seu PIB per capita em R$ 33 mil. O outro lado da moeda, é o baixo PIB per capita dos municípios de menor porte que praticamente mantêm o mesmo patamar, caso de Araçoiaba e Itamaracá, com valor abaixo de R$10mil.
No mercado de trabalho, conforme analisado pelo Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado – PDUI (Agência Condepe-FIDEM, 2019), chama a atenção o desequilíbrio entre oferta e demanda de emprego nos diferentes municípios da metrópole. O resultado são deslocamentos de pessoas que vivem em munícipios com excesso de mão de obra (PEA maior que emprego local) para municípios com demanda por trabalho inferior à sua oferta de emprego. Isto, além de pressionar o sistema de mobilidade urbana, resulta na transferência de renda de municípios de maior base econômica para municípios de residência dos trabalhadores.
Com relação ao emprego formal, ressalta-se o fato de que o Recife concentra 64,9% das ocupações com carteira assinada da RMR; e, se somarmos Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho, Olinda, Paulista e Ipojuca, chega-se a 93,2% do emprego formal da metrópole (dados da RAIS, Ministério do Trabalho e Emprego, 2018).
Setorialmente, em 2018, observa-se uma relevante contribuição de 21,8% das atividades da ‘administração pública’, no total da força de trabalho da metrópole. No setor privado, ressaltam no total dos empregos formais da RMR: comércio varejista (11,4%); os serviços de saúde (5,7%) e os serviços de educação (5,6%).
A fraglidade e dualidade do mercado de trabalho da metrópole também se expressa na ótica do rendimento. Segundo o Boletim Desigualdade das Metrópoles (Observatório das Metrópoles e PUC-RS, 2021), a metrópole recifense apresentou, no último trimestre de 2021, rendimento médio mensal de R$ 831,66 per capita (PNAD/IBGE), o terceiro mais baixo entre as metrópoles do Brasil e bem inferior ao conjunto do Brasil de R$1.378 – valor mais baixo em 10 anos. Em 2013 o rendimento médio da RMR foi de R$ 1.427,94; de R$1.047,42 (2019); e já com a pandemia, recuou em 2020 para R$ 858,11.
Do ponto de vista dos 40% mais pobres, a retração da renda médIa foi ainda mais dramática, no último trimestre de 2021, com apenas R$104 mensais per capita, o que faz da RMR, segundo a pesquisa acima referida: “a metrópole brasileira onde os pobres são os mais pobres”. A Pandemia veio a comprometer ainda mais um perfil de renda que já era muito desigual: em 2019, portanto, antes da pandemia, o rendimento médio dos 40% mais pobres era de R$ 155. Somando os 40% mais pobres e os 50% “intermediários”, temos 90% dos moradores da RMR vivendo com renda média mensal bem abaixo de um salário mínimo per capita. Esta realidade tão desigual da apropriação da renda pode ainda ser constatada pelo fato de 52,3% da população da RMR deter renda per capita domiciliar de até ½ salário mínimo (microdados da PNAD, IBGE, 2005).
Ficam aí, desafios importantes que devem estar na agenda do próximo mandato a governador de Pernambuco: como ajudar a superar a significativa dualidade e desigualdades da estrutura produtiva e da geração de empregos e renda na RMR
Valdeci Monteiro dos Santos é economista, sócio-diretor da Ceplan Consultoria e professor de Economia e assessor de planejamento da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)