Clima já é de deserto em parte do Nordeste, mas alívio chega a conta-gotas

Estudo constatou que primeira zona árida do Brasil surgiu em áreas de clima intenso que já padecem com a falta de infraestrutura e com os piores indicadores de abastecimento de água
Deserto no Nordestes
Diferentemente das grandes secas, que são cíclicas, o clima árido é algo que chega para ficar, mudando para sempre o modo de vida e as atividades econômicas / Foto: Agência Brasil

Quando se falava do clima no Nordeste, o semiárido era o que se conhecia de mais hostil à agricultura, à distribuição de água potável e à sobrevivência de quem mora no campo. As grandes secas do passado – como a retratada no livro O Quinze, da cearense Rachel de Queiroz, lançado em 1930 – não são algo tão pretérito assim e, de forma cíclica, se repetem na contemporaneidade, como a estiagem que assolou a região entre 2012 e 2017. As medidas de alívio, porém, estão vários passos atrás, mesmo sendo ainda mais urgentes agora que parte do solo nordestino está virando literalmente um deserto.

A primeira região árida brasileira foi identificada no norte da Bahia em estudo divulgado pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em novembro de 2023. A área abrange municípios como Abaré, Chorrochó e Macururé, além de parte de Rodelas, Curaçá e Juazeiro, já na divisa com Pernambuco. A conclusão foi possível após a identificação da redução de nuvens, da diminuição de chuvas e da ocorrência de períodos muito prolongados de incidência de raios solares sobre o solo, que perde umidade e deixa de ser fértil e com atrativos para a habitação humana.

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A meteorologista Aparecida Fernandes, da Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac), explica que, diferentemente das grandes secas, que são cíclicas, o clima árido é algo que chega para ficar, mudando para sempre o modo de vida e as atividades econômicas. “A região entre o norte da Bahia, na divisa com Pernambuco, é onde chove menos no Brasil, porque diversos sistemas meteorológicos que atuam no norte, no leste e no sul não chegam ou chegam com menos intensidade àquela área. Com o aumento das temperaturas, a tendência é que essas regiões áridas apareçam e aumentem”, explica.

A especialista afirma ainda que, em outros países onde há clima árido, as populações e a atividade econômica passaram a se adaptar, por meio de soluções que garantam a chegada da água. “São locais onde a falta de água atinge índices graves e que impedem o desenvolvimento da vida vegetal e animal. No nosso caso, não vamos imaginar aquelas cenas de areia de deserto, mas, sim, regiões menos propensas ao desenvolvimento da vida. E a não ser que se leve água para lá em reservatórios, a sobrevivência e a produção econômica ficam realmente muito difíceis. Se não tivéssemos o Rio São Francisco naquela zona de transição, atuando e influenciando os sistemas, seria um desafio ainda maior”, completa.

Clima: situação se agrava devido à baixa disponibilidade hídrica

O cenário se torna ainda mais desafiador devido à baixa disponibilidade hídrica. Pernambuco, que tem vários municípios limítrofes à primeira zona árida brasileira, possui a menor quantidade de água disponível por habitante no país. O Censo 2022 também revela que o estado é o que tem mais domicílios sem acesso a água encanada: 284,6 mil, o que corresponde a 9% do total.

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A Bahia vem em segundo lugar, com 218,7 mil endereços nessa condição, seguida por Ceará (133,6 mil), Maranhão (124,3 mil), Paraíba (120,6 mil), Alagoas (80,5 mil), Rio Grande do Norte (50,2 mil) e Piauí (50,1 mil). Esses estados ocupam oito das dez piores posições no Brasil quando o assunto é acesso a estruturas de abastecimento adequadas.

Transposição do Rio São Francisco
Considerada a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil, a transposição do Rio São Francisco  tem como objetivo garantir segurança hídrica a 12 milhões de habitantes, em 390 municípios, nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte / Foto: Dênio Simões/Governo Federal

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também revelam que o Nordeste tem forte dependência de medidas que deveriam ser emergenciais, mas que acabam se perenizando devido à falta de infraestrutura, a exemplo do abastecimento com carros-pipa. Dos 703,5 mil domicílios que precisam desses atendimentos no Brasil, 625 mil são nordestinos, o que é 88,8% do total. Chama atenção que metade desse número é composta por domicílios que têm canos ligados à rede. Ou seja, a estrutura existe, mas a água não chega pelas torneiras devido a rodízios rigorosos no fornecimento.

Poder público promete novo fôlego para obras hídricas

O atraso nas soluções hídricas adia o alívio à aridez. A transposição do Rio São Francisco, iniciada em 2007 e projetada para 2012, só teve suas obras principais concluídas dez anos depois do previsto e ainda ficou devendo intervenções secundárias nos estados com apoio federal. Relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ainda em 2019 já indicava que, além de prolongar o sofrimento de quem vive ou produz no semiárido, a demora para entregar essas obras consumiu R$ 7 bilhões a mais dos cofres públicos em relação ao que estava inicialmente projetado.

Diante do agravamento da situação, o poder público tem emitido sinais de que quer dar novo fôlego às obras hídricas. O Novo PAC, do Governo Federal, incluiu intervenções como a segunda etapa da Adutora do Pajeú, em execução desde 2014 para levar água a 32 localidades da Paraíba e de Pernambuco. Com 70% de conclusão, a obra deve ser entregue no fim deste ano, conforme informações de monitoramento divulgadas pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS).

A Adutora do Agreste, em Pernambuco, é outro caso emblemático. Deveria ter sido concluída em 2015, mas sofreu atrasos devido à falta de contrapartidas federais. Agora, terá recursos do Novo PAC ao mesmo tempo em que já começa a entregar resultados nas etapas que ficaram prontas.

Na sexta-feira (22), o Governo de Pernambuco anunciou que os domicílios de três distritos de Brejo da Madre de Deus, no Agreste do estado, passarão a ter água todos os dias nas torneiras, aliviando uma rotina que era de 15 dias com água e outros 15 sem abastecimento em uma região que se destaca pelo turismo religioso.

Plano vai nortear combate à desertificação

Enquanto as grandes obras não saem completamente do papel, as diferentes esferas de governo se mobilizam para elaborar outras frentes de ação para a convivência com a desertificação. No início de abril, Paulo Afonso, na Bahia – vizinho a Rodelas, município inserido na zona árida detectada no estado – vai sediar o Seminário Estadual de Elaboração do 2º Plano de Ação Brasileiro de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, principal aposta do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima para nortear as próximas ações a serem adotadas pela União, por estados e municípios.

Com primeira edição lançada em 2005, o plano busca especificar o papel dos entes governamentais, das comunidades locais e dos detentores de terra, além de determinar quais os recursos disponíveis e quais os necessários para combater a desertificação. Para a construção do novo formato do documento, encontros preparatórios têm sido realizados nos estados nordestinos com a participação de especialistas, gestores públicos e representantes de organizações não governamentais. O calendário já foi cumprido no Rio Grande do Norte e na Paraíba e, na semana passada, em Serra Talhada, em Pernambuco.

Obra da Adutora do Agreste, em Pernambuco
Adutora do Agreste, em Pernambuco, deveria ter sido concluída em 2015, mas sofreu atrasos devido à falta de contrapartidas federais / Foto: Compesa/Divulgação

“Fomos convidados a participar da elaboração do Plano de Ação na perspectiva da política de convivência com o semiárido. O processo de desertificação é um fenômeno nacional, mas está muito mais presente no Nordeste. Estamos trabalhando em conjunto com diversas instituições e contribuindo com a construção dos planos estaduais, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente”, afirmou o coordenador de Desenvolvimento Territorial, Infraestrutura e Meio Ambiente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), José Farias, presente no evento realizado no Sertão de Pernambuco.

Instituições como a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e tribunais de contas estaduais também estão envolvidas nas discussões. A expectativa é de que o plano nacional seja lançado até junho pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Leia mais: Água: com pior oferta do país, Pernambuco terá R$ 52 mi para melhorar abastecimento

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