Francisca e Iramar tiveram as suas rotinas alteradas, aos poucos, com a chegada dos parques eólicos à sua cidade. A vida de Francisca piorou por causa de torres eólicas instaladas no terreno do vizinho. Para Iramar, as torres trouxeram um rendimento extra, mas muito aperreio devido ao trânsito de trabalhadores e máquinas em suas terras. Francisca faz parte de um grande grupo de pessoas que foram vítimas de contratos abusivos. Neles, há arrendatários ganhando R$ 1,00 por hectare arrendado, como constatou levantamentos realizados pelo pesquisador Rarisson Sampaio, da Universidade Federal da Paraíba, e pelo membro do Ministério Público Federal da Paraíba José Godoy.
Moradora do município potiguar de Caiçara do Norte, a agricultora de subsistência Francisca da Silva Barbosa, teve seu bem-estar afetado pelo parque eólico que chegou à região. Próximo à sua casa, foram implantadas duas torres eólicas no terreno do vizinho. “O barulho é noite e dia. É constante, mas tem dias piores e aí fica mais alto. Afetou a minha saúde. Não tinha insônia, nem ansiedade. Passei a ter as duas. Tomo remédio pra dormir. E quando estou muito ansiosa, tomo calmante”, conta a agricultora, que aos 51 anos, vive do plantio de feijão e da criação de cabras.
O ruído não foi a única alteração na rotina de Francisca. A residência dela fica na área rural do município em frente a uma estrada que corta o Assentamento Baixa da Quixaba 1. “A estrada ficou cheia de buraco por causa das carretas que passam carregando equipamentos. Ninguém imaginava que uma estrada dentro de um assentamento ia ter um movimento tão grande”, conta.
Atualmente, a casa de Francisca está com várias rachaduras “por causa do peso nas estradas e os equipamentos das eólicas”. Ela acrescenta: “sou pobre. Não sei a quem recorrer”. Os buracos da estrada também ficam cheios de água, quando chove. E a água acaba empoçada chegan até a propriedade de Francisca. “Da última vez que choveu e alagou, morreram oito ovelhas, porque elas ficaram com as patas dentro da água, infeccionou e eu não tive condições de fazer um tratamento”, explica Francisca. Este ano, ela também perdeu a colheita do feijão por causa do alagamento.
O parque eólico também trouxe outra alteração na vida de Francisca, que tem uma propriedade de 33 hectares. “Uma linha de transmissão cruzou o meu terreno na vertical e na horizontal. Quando as pessoas da empresa vieram aqui, disseram que isso não iria atrapalhar, mas diminuiu o espaço que tínhamos para plantar”, comenta. A área que fica embaixo da linha de transmissão não pode ter vegetação para permitir a passagem dos carros, quando necessário, segundo Francisca.
Os parques próximos à casa da agricultora tiveram a licença para operar em 2021 e Francisca recorda que recebeu R$ 700 a título de indenização. “Tinha um filho especial na época e passava dias em Natal (por causa do tratamento dele). Quando cheguei, disseram que só faltava eu para assinar o contrato. Assinei”, afirma ela, dizendo que o contrato está guardado com todas as condições do arrendamento da área. Em média, os contratos que indenizam pela passagem da infraestrutura, como é o caso do de Francisca, pagam uma quantia para o dono passar mais de três décadas sem usar aquela parte do terreno. E o valor pago é considerado irrisório, principalmente pelo tempo que a agricultora vai ficar sem fazer uso da terra.
Também no Rio Grande do Norte, o presidente da Associação de Moradores e Agricultores da Serra do Doutor 3, Iramar Borges de Oliveira, arrendou uma parte da sua propriedade para passar a infraestrutura (“acesso”) que será usada para escoar energia de um parque eólico que está se instalando no município de Campo Redondo. “A gente tem criação e a empresa terceirizada contratada pelo parque deixou os portões (da propriedade) abertos. Se os portões ficarem abertos, os animais fogem”, conta ele, que recebeu dois salários mínimos como indenização pela passagem do cabeamento da linha de transmissão no seu terreno.
Os portões abertos fizeram Iramar perder uma novilha, avaliada em cerca de R$ 2 mil. Ele recebe cerca de R$ 3 por hectare na área que arrendou para passar o cabeamento do parque na sua propriedade que tem 78 hectares. Isso corresponde a R$ 2.590,00 líquidos por ano. “Quando a torre entrar em operação não sei quanto vão pagar. Dizem que é algo em torno de R$ 2.500 por mês”, comenta. “Vai ser ótimo”, diz ele, se referindo a receita futura, porque atualmente o dinheiro que estão pagando não está bom. Quando começar a operação, ele passa a receber um percentual sobre a energia produzida.
Ele não mora perto do local onde estão sendo instaladas as torres. Outro problema que a implantação dos parques está causando é o “esburacado” da estrada que passa pelo local por causa do tráfego intenso de caminhões, segundo o produtor. A outra consequência é o “desmatamento, que é triste de ver”. Iramar tem dois terrenos e ressalta que um deles é mais úmido e para lá leva os animais, quando o tempo está mais seco. Os buracos e alagados dificultam a viagem.
Os contratos das eólicas refletem a desigualdade social
Os contratos de arrendamento pagam menos e têm mais cláusulas que prejudicam o arrendatário, quanto mais simples for a pessoa que fez o arrendamento. “No aspecto social, o maior problema está nos contratos que impõem restrições ao uso da terra pelas comunidades. Na assinatura dos contratos, há uma disparidade entre quem tem uma assessoria jurídica com capacidade de pagar por isso e quem não tem. Os grandes latifundiários não têm contratos abusivos”, diz o advogado e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba, Rarisson Sampaio, que também é consultor socioambiental.
Ele cita um estudo que analisou 50 contratos de arrendamentos de área a parques eólicos, em vários Estados do Nordeste, de pequenos proprietários, que têm em média, 100 hectares. Os contratos de arrendamento tinham em comum “a estipulação de remunerações irrisórias demonstra um abuso cometido frente à fragilidade dos núcleos familiares, oferecendo uma renda que não reflete o proveito econômico da atividade realizada na propriedade”, de acordo com o estudo. Só lembrando: energia é um bem que é vendido por um preço alto no País.
Lançado em outubro do ano passado, o relatório foi elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com o Plano Nordeste Potência, fórum formado por entidades que defendem uma transição energética justa.
Nos contratos com os parques eólicos, geralmente, os agricultores passam a receber uma receita, quando arrendam o terreno – para a implantação do empreendimento – que varia de R$ 1 a R$ 12 por hectare – e um percentual, que varia de 1% a 2% da energia produzida, quando as torres começam a produzir. No entanto, não é colocado nenhum medidor na torre, informando o quanto está sendo gerado de energia ao dono da terra.
Quando é iniciada a produção de energia eólica, quem informa o quanto está sendo gerado, é a empresa. “Não há transparência”, diz Rarisson, acrescentando que em alguns contratos o pequeno proprietário da terra pode pedir o quanto está sendo produzido, mas ele questiona se um homem simples do campo vai entender uma memória de cálculo. Isso pode tornar este acompanhamento muito difícil.
Na Paraíba, existem recomendações por contratos mais justos
Na Paraíba, uma ação conjunta do Ministério Público Federal da Paraíba(MPF), Ministério Público do Estado da Paraíba (MPPB) e as defensorias públicas da União e da Paraíba formularam algumas recomendações no sentido de diminuir os impactos negativos provocados pelos empreendimentos de energias renováveis e também com a finalidade de estabelecer parâmetros mínimos que evitem a baixa remuneração dos contratos, feitos principalmente com os pequenos agricultores.
Uma das recomendações pede a intermediação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos contratos. “O Incra deve atuar para que haja um contrato justo, negociando de forma coletiva. E quem vai sofrer o impacto deve ser consultado, participar do processo mesmo que não seja no seu território”, resume o procurador e membro do Ministério Público Federal na Paraíba José Godoy. Muitas vezes as torres não trazem problemas ao dono da terra, mas a quem mora no entorno, como é o caso de Francisca.
Segundo José Godoy, “são muitos os prejuízos causados aos agricultores. Primeiro, a concepção da negociação que diz ser sigiloso o contrato assinado. Os agricultores ficam sem assessoria jurídica. Quando tem uma torre instalada, a empresa é que informa a quantidade de energia vendida. Muitos assinaram contratos ganhando R$ 1 por mês (por hectare). Eles assinaram sem uma análise técnica. E muitos desses contratos ferem a boa fé. É uma luta desigual”.
O grupo também recomendou que antes da implantação do empreendimento deve ser feita uma consulta prévia livre informada com a finalidade de apresentar as informações – sobre o empreendimento – às comunidades que serão impactadas pelo mesmo.
Também entre as recomendações do grupo está uma distância de 400 metros entre uma torre eólica e uma moradia residencial. Em todo o Nordeste, existem muitas torres quase em cima das casas, principalmente em comunidades. “Os que estão no quintal também sofrem transtornos. Isso tem sido um problema grave”, afirma José Godoy.
O desenvolvimento que não se concretizou
Durante muito tempo, especialistas acreditaram que o semiárido do Brasil, localizado no Nordeste, passaria por um novo ciclo de desenvolvimento com a implantação dos parques de energia eólica. Mais de 98% destes empreendimentos estão instalados na região. As eólicas respondem por quase 15% da capacidade instalada de gerar energia no País.
Os empreendimentos eólicos trouxeram uma nova realidade à região que se tornou uma grande produtora de energia com perspectivas promissoras para os próximos anos, inclusive com a futura produção de energia solar. Grande parte do potencial de geração das eólicas e solares está no semiárido do Nordeste, que é um dos mais povoados do mundo.
A maior parte das cidades que receberam parques solares tiveram um grande impacto na sua economia durante a construção do empreendimento, segundo a professora do Instituto de Políticas Públicas da UFRN e Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar Sociedades, Ambientes e Territórios (LISAT), Zoraide Souza Pessoa. Organizadora e autora livro Energia eólica perspectivas e desafios no Rio Grande do Norte, ela estuda o impacto destes empreendimentos há mais de 10 anos.
Zoraide explica que o grande impacto econômico dos empreendimentos eólicos ocorreu na fase de construção – principalmente com a geração de emprego e renda – e que os impactos negativos provocados pelos parques eólicos ocorreram, da mesma maneira, em vários Estados como Rio Grande do Norte, Bahia, Paraíba e Pernambuco, entre outros. Os dois primeiros foram os que mais receberam empreendimentos eólicos.
“Dos 41 municípios que produzem energia eólica no Rio Grande do Norte, nenhum teve a sua realidade econômica acentuadamente modificada. Eles continuam com o Índice de Desenvolvimento Econômico de médio pra baixo”, comenta Zoraide.
O que ocorreu em Tacaratu
Com pouco mais de 23 mil habitantes, a cidade de Tacaratu, no Sertão de Pernambuco, teve um grande parque eólico, da Enel Green Power, inaugurado em 2015, o primeiro grande empreendimento instalado na cidade.”A mudança que a gente viu aqui foi principalmente na fase de construção, que empregou muita gente. A gente desconhece um trabalho social da empresa voltado para a comunidade (da área urbana) de Tacaratu. O que a gente percebe é que melhorou a vida das pessoas que alugam os terrenos para o parque eólico”, conta a coordenadora do Instituto Galego Teixeira, Sílvia Campos. A entidade desenvolve várias ações sociais na sede do município de Tacaratu.
Os donos das terras onde o parque se instalou passaram a receber, mensalmente, pelo arrendamento. É o caso do comerciante Paulo Lacerda Filho, que tem um terreno onde foi implantado três aerogeradores em Tacaratu. Ele tem uma farmácia e cria animais na sua propriedade. “Era uma terra sem uso, porque os animais não iam lá. É uma renda extra que está ajudando muito”, diz Paulo, sem acrescentar o quanto recebe por mês, argumentando que essa é uma informação particular. Ele mora a 4 km do local onde estão instaladas as torres.
“A implantação do parque foi boa, porque é uma energia limpa. Mais pessoas passaram a visitar Tacaratu, o que também é bom. O empreendimento deixou a desejar em termos de arrecadação”, resume o prefeito de Tacaratu, Washington Angelo de Araújo (MDB).
“Depois da instalação do parque eólico, a quantidade de impostos que o empreendimento recolhe para o município é pontual e ocorre somente quando tem uma manutenção”, comenta Washington. Ao ser questionado sobre o que ficou para a cidade depois da construção do empreendimento, ele responde “zero bala”, argumentando que não percebeu qualquer iniciativa concreta da empresa para o município.
Os parques instalados em Tacaratu são os Fontes dos Ventos, Fontes dos Ventos II, Fontes Solar I e II, que pertencem a multinacional Enel Green Power. Em 2022, a empresa inaugurou o parque híbrido, que inclui a geração solar.
Atualmente, a prefeitura de Tacaratu tem três execuções fiscais contra a Enel Green Power, cobrando o Imposto sobre Serviço (ISS) sobre um serviço prestado na construção do empreendimento, que não foi recolhido, segundo o consultor jurídico do município de Tacaratu, Vadson Almeida. Segundo ele, a primeira execução é no valor de R$ 4,8 milhões. “Quando todos os valores das três execuções são corrigidos passam de R$ 15 milhões”, explica o advogado.
A assessoria de imprensa da Enel informou que “a Enel recolhe regularmente seus tributos. As ações judiciais mencionadas se referem às operações de compra de equipamentos para os parques em que as companhias envolvidas entendem não haver imposto devido aos municípios, e sim ao Estado. As empresas apresentaram os recursos cabíveis nas respectivas ações e aguardam a decisão judicial sobre o tema.
Ainda em nota, a assessoria de imprensa informou que a Enel Green Power desenvolveu mais de 40 projetos de sustentabilidade na região de Tacaratu com cerca de 28 mil beneficiados, incluindo a construção de seis miniusinas solares em agrovilas na área de influência do parque que são usadas por famílias que vivem em assentamentos na área rural do município. O investimento nas miniusinas foi cerca de R$ 800 mil, de acordo com a empresa.
Ainda de acordo com a empresa, foram desenvolvidos mais de 40 projetos de sustentabilidade na com cerca de 28 mil beneficiados, incluindo a construção de 6 miniusinas solares na área de influência do parque que são usadas por famílias em assentamentos na área rural. O investimento nas miniusinas foi de cerca de R$ 800 mil.
Tacaratu é um pouco de tudo que está ocorrendo no Nordeste com os empreendimentos de geração eólica. Os proprietários de terra que já tinham algum ganho estão recebendo uma renda extra, moram a uma distância razoável das torres, enquanto os pequenos – que moram muitas vezes em assentamentos – têm, em sua maioria, contratos abusivos e sofrem os impactos ambientais e sociais que têm alterado a vida de milhares de pessoas na região.
Leia a 2ª reportagem da série:
Energias renováveis são a segunda causa do desmatamento da caatinga
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