Uma crise no setor eólico já vinha sendo discutida tanto nas empresas quanto nas entidades do segmento desde 2022, quando as encomendas de equipamentos de geração simplesmente pararam, no segundo semestre do ano. A partir de 2023, no entanto, a situação subiu para outro patamar, com sinais preocupantes de avanço dos problemas na cadeia.
Em junho passado, a empresa baiana Torres Eólicas do Nordeste (TEN) demitiu 500 empregados. A fábrica de equipamentos para o setor eólico é uma joint venture entre a Andrade Gutierrez (Brasil) e a GE (EUA).
Outro alerta vermelho, mais recente, veio da produtora de pás Aeris Energy, localizada no Ceará. Entre o final de abril e o início de maio, a companhia demitiu 1,5 mil trabalhadores.
Para compreender o que acontece nesse momento – aparentemente um paradoxo em relação ao boom de energias renováveis em todo o mundo e aos investimentos que vêm sendo realizados no Nordeste – conversamos com a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica, Elbia Gannoum.
Confira essa conversa exclusiva e entenda o cenário e seus impactos na região, considerada a nova fronteira energética do Brasil.
Os estados nordestinos são os maiores produtores de energia eólica do país, com o Rio Grande do Norte em 1º lugar, seguido por Bahia (2º), Ceará (3º) e Piauí (4º). Também abrigam dezenas de fábricas de equipamentos para a cadeia, como aerogeradores, pás e torres.
A dinamarquesa Vestas, por exemplo, tem sua única fábrica de turbinas no Brasil, localizada em Aquiraz, no Ceará, além de uma central de manutenção, no Rio Grande do Norte, que atende a todo o mercado nacional.
“Desde a metade de 2022, as geradoras não estão assinando novos contratos com os fabricantes de equipamentos do setor eólico”, afirma Elbia Gannoum
ME: A crise que acontece no setor eólico é de fato um problema de toda a cadeia, incluindo a geração, ou algo mais específico na área de equipamentos?
Elbia Gannoum: A crise que a indústria de energia eólica está enfrentando é um problema em toda a cadeia de produção. Nós até falamos em indústria, setor que abrange tanto o segmento de geração de energia como o segmento de fabricação da cadeia de fornecimento. E é por que ela acontece hoje? Uma empresa de geração vende um contrato e, depois disso, ela vai buscar a compra de uma turbina para construir o parque eólico.
Então a geradora faz um pedido ao fabricante de turbina, que tem toda uma cadeia de fornecedores. A indústria de turbinas contrata esses fornecedores, como o fabricante de pás, de torres, de parafusos e a empresa de engenharia, então esse processo de produção ocorre.
Mas, o que está acontecendo nesse ciclo? Desde a metade de 2022, as empresas geradoras de energia não estão assinando novos contratos. Elas não fazem o pedido às fábricas de turbinas, que, por consequência, não fazem o pedido aos fornecedores de equipamentos. E aí a crise se expande para a cadeia produtiva toda.
Parece uma contradição quando a percepção visual que se tem é de muitas instalações de parques eólicos. Mas não há paradoxo nesse sentido. Os parques, como todo empreendimento de infraestrutura, tem seu tempo de maturação de projeto e implantação. Uma decisão que é tomada hoje traz efeitos daqui a dois anos. Então os complexos que estão sendo instalados hoje são de decisões de investimento tomadas há três anos. São contratos antigos, fechados antes de 2022.
“As usinas do setor eólico em operação, construção ou que, apesar de anunciadas agora, foram contratadas no passado, não estão com problemas”, diz a executiva
ME: Agora vamos falar da oferta de energia que, aparentemente, deixou de ser um gargalo no país, principalmente em fases de reservatórios das hidrelétricas cheios, como acontece agora. Não parece contrassenso a instalação ainda em curso de dezenas de usinas eólicas, particularmente no Nordeste, e há investimentos anunciados que ainda nem começaram a sair do papel?
Elbia Gannoum: Estamos falando de crise associada a novos projetos. Os que vemos funcionando hoje, os que estão em construção e os que foram anunciados recentemente são todos resultado de decisões de investimentos tomadas no passado. São contratos de venda de energia antigos e compras de turbinas e equipamentos fechadas há mais de dois anos.
Quanto à situação dos projetos eólicos em funcionamento num cenário de reservatórios cheios no setor hidráulico, a questão operacional faz parte do processo, que é dinâmico e muda de acordo com as condições de geração. Os reservatórios estão cheios hoje, mas podem não estar amanhã. Da mesma forma, temos ventos hoje suficientes para a geração eólico e amanhã, dependendo das condições meteorológicas, os ventos podem diminuir. Esses dois setores, hidrelétrico e eólico, na verdade, são complementares.
A crise que estamos vivendo não tem relação com esse fator que é parte do jogo, com uma melhoria operacional dos reservatórios das hidrelétricas num determinado momento e que pode não se repetir. As usinas eólicas em funcionamento, em implantação ou que foram anunciadas agora – mas tinham sido contratadas no passado – não estão com problemas e todas estão preparadas para ciclos de maior ou menor demanda devido à disponibilidade de água.
A crise de que falamos diz respeito a novos projetos, novos pedidos de equipamentos, novos contratos de venda de energia, novos pedidos no chão de fábrica dos produtores de turbinas e geração de novos postos de trabalho.
ME: Existe superoferta de energia eólica no Brasil?
Elbia Gannoum: Eu não chamo de super oferta. Eu chamo de escassez de demanda. E isso é conjuntural. Isso acontece porque a economia brasileira teve um fraco desempenho nos últimos anos [a expansão do PIB é o principal fator que influencia a demanda]. Além disso, tivemos um crescimento muito forte da geração distribuída [solar]. Muitos consumidores [ao instalarem placas fotovoltáicas próprias ou comprarem eletricidade de usinas solares remotas] deixaram de consumir energia da rede das distribuidoras, que é para onde vai a produção do setor eólico.
ME: Essa questão da demanda é um problema pontual ou um cenário que vai permanecer já que, no médio e longo prazo, não temos a expectativa de um crescimento da economia numa escala que impacte significativamente o consumo de energia?
Elbia Gannoum: É uma conjuntura que tende a ser superada, com tudo que o Brasil está preparando, como esses pacotes de política industrial que estão sendo anunciados. Tudo isso tende a permitir uma recuperação da economia e impactar a demanda de energia. Imagino que, no segundo semestre deste ano, uma retomada já seja perceptível. O problema é que muitos fabricantes, com problemas desde 2022, não conseguiram esperar essa solução e por isso acabaram demitindo.
“O Brasil não tem competitividade para exportação de equipamentos do setor eólico e nós precisamos trabalhar para mudar isso”, reconhece a líder da cadeia no país
ME: A indústria de equipamentos finalmente, num momento de crise, parece acordar para as oportunidades no mercado internacional, um caminho natural para qualquer setor com essa escala de produção. Faltou essa visão de longo prazo aos fabricantes?
Elbia Gannoum: O mercado externo pode sim ser uma saída, mas é uma saída para o longo prazo, porque precisamos reduzir o Custo Brasil para conseguirmos ser competitivos globalmente e exportar equipamentos. Hoje, o país não tem competitividade para exportação de equipamentos do setor eólico e nós precisamos trabalhar para que o segmento consiga fazer isso.
ME: Como uma eventual viabilização da produção de hidrogênio verde no Brasil – e os maiores projetos anunciados estão no Nordeste – pode trazer novo fôlego para a cadeia do setor eólico, da geração à produção de equipamentos?
Elbia Gannoum: O hidrogênio é uma grande saída. Por isso reforço que o problema atual é conjuntural. No médio e longo prazo, temos perspectivas de retomada e o H2V é um dos caminhos nesse sentido.
A descarbonização da economia brasileira para seguir as exigências globais da transição energética, a produção de aço verde pelas siderúrgicas, a fabricação de bens em processos de carbono neutro, o agronegócio com amônia verde e fertilizantes zero emissão, tudo isso será capaz de trazer uma demanda maior por energia limpa, sustentada no longo prazo. Porém, para que seja possível criar a estrutura necessária para esse passo adiante, precisamos primeiro de políticas para a neoindustrialização do país.
ME: Se por um lado, há um gargalo para absorção da produção de equipamentos, como está a relação oferta e demanda na área de manutenção, um fator essencial para o sucesso da cadeia?
Elbia Gannoum: A manutenção vai bem, considerando que a oferta está adequada para a demanda dos projetos existentes. A questão é se estará adequada também para novos projetos, quando estes surgirem.
“Se os investimentos do setor eólico em geração pararem, daqui a algum tempo, os de transmissão também vão parar”, defende a executiva à frente da Abeeólica
ME: Os investimentos no setor eólico no país parecem ter se concentrado na produção de energia e equipamentos de geração, enquanto outras áreas, como a transmissão, ficaram em segundo plano. A chinesa State Grid viu nisso uma oportunidade e está investindo R$ 18 bilhões numa linha de transmissão 100% destinada a renováveis, entre o Nordeste e o Norte. Faltou essa visão ao setor como um todo, de que os negócios não poderiam apenas ser voltados para a geração?
Elbia Gannoum: Nós temos um bom planejamento e superamos o descompasso entre geração e transmissão. Recentemente, o governo realizou leilões de transmissão e nós temos empresas, como é o caso da State Grid, e várias outras que estão investindo em transporte de energia. Isso não tem nada a ver com a crise atual, concentrada na geração. E se os investimentos em geração pararem, daqui a algum tempo os de transmissão também vão parar, porque ninguém vai transportar eletricidade que não existe. Mas tenho convicção que isso não vai acontecer porque teremos uma retomada no médio prazo.
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