Pedro de Menezes Carvalho[1]
David Bohm, físico quântico que influenciou profundamente o pensamento de personalidades como o Dalai Lama, faz uma provocação intrigante: na ciência (e, na verdade, em todo o mundo), vivemos em um processo contínuo de fragmentação. Na natureza, não há divisões intrínsecas entre física, química e biologia; essas fronteiras foram criadas por nós, humanos, como forma de organizar e simplificar a compreensão da realidade.
A divisão entre Direito Público e Direito Privado, herança do sistema jurídico romano, também servia, em essência, para definir campos de atuação. No entanto, na prática, essas fronteiras são frequentemente transpostas. Quantas vezes, por exemplo, dentro da administração pública, encontramos a celebração de contratos que seguem os moldes do Direito Privado? Ainda assim, essa fragmentação acadêmica persiste há séculos, promovida e reforçada pelos próprios cursos jurídicos. É comum ouvir no meio jurídico a crítica de que “nossas faculdades estão no século XVIII, enquanto nossos clientes já vivem no século XXI.” Essa frase simboliza um descompasso entre a formação acadêmica e as demandas do mercado moderno.
Para nossa reflexão, vale lembrar que essa fragmentação não é exclusiva do Direito. Áreas como a saúde também adotam esse modelo. Criam-se especialistas em partes específicas do corpo humano, ignorando que ele funciona como um todo integrado. É possível, por exemplo, diagnosticar um infarto ou um AVC a partir de uma simples dor de dente; ou, ainda, a perda de um dente pode desencadear problemas ortopédicos devido ao desequilíbrio causado no organismo.
Isso não significa que todos os profissionais devam ser generalistas. Entretanto, dentro de nossas áreas de atuação, é essencial adotar uma visão ampla e buscar constantemente novas fontes de conhecimento. O maior problema surge quando olhamos apenas a parte, ignorando o todo. Esse enfoque fragmentado cria um gap entre a real necessidade do cliente e a qualidade do serviço prestado.
A especialização é fundamental, sem dúvida, mas ela não deve excluir uma perspectiva sistêmica. Ter um cardiologista, por exemplo, é indispensável em determinados momentos, mas o remédio prescrito por ele pode, eventualmente, agredir o pulmão se o impacto no organismo como um todo não for considerado. Da mesma forma, uma solução contratual pode ser eficaz a curto prazo, mas acabar gerando problemas sucessórios no futuro. A visão de qualquer profissional deve ser integrada e sistêmica.
No mundo jurídico, essa fragmentação também é evidente. Adianta agarrar-se à teoria monetária clássica e considerar apenas o Real como moeda circulante? Ainda que o Real seja oficialmente a moeda nacional, criptomoedas e criptoativos estão rompendo essas barreiras e criando uma nova realidade econômica. Já existem transações amplamente realizadas com esses ativos, e o Banco Central do Brasil atualmente discute a regulamentação de operações de câmbio envolvendo criptomoedas. Esse movimento sinaliza que estamos diante de um novo paradigma, que exige uma visão mais ampla e adaptada às transformações contemporâneas.
O Direito tem passado por uma transformação significativa, redefinindo sua atuação e ampliando seu impacto no ambiente empresarial. Olhando especificamente para o Direito Societário, antes visto como uma área predominantemente voltada à solução de conflitos e questões burocráticas, hoje ele se posiciona como um instrumento estratégico para a criação de valor e o desenvolvimento econômico. Essa evolução reflete a necessidade de alinhar a prática jurídica às demandas de um mercado cada vez mais dinâmico, tecnológico e globalizado, onde o foco está na promoção de negócios e na potencialização de oportunidades, e não apenas na resolução de disputas.
Essa mudança de paradigma exige que o advogado transcenda o papel tradicional de técnico jurídico e passe a atuar como um facilitador de negócios. Essa nova abordagem, frequentemente discutida em programas de pós-graduação sob o conceito de Direito dos Negócios, requer uma visão multidisciplinar e integrada. Nesse contexto, a Engenharia Jurídica surge como uma poderosa metodologia para estruturar soluções eficientes e inovadoras. Ao combinar sólidos conhecimentos jurídicos com ferramentas analíticas, metodologias de gestão e expertise em áreas como governança corporativa, contabilidade, economia, estatística e tecnologia, o profissional do Direito torna-se um verdadeiro estrategista e parceiro na criação de valor.
Temas do Direito dos Negócios
O Direito dos Negócios abrange uma vasta gama de questões que vão além do Direito Empresarial tradicional. Ele incorpora temas como arranjos societários e contratuais, estruturação de operações financeiras, mercado de capitais, governança corporativa, reestruturação de empresas, recuperação judicial e aspectos concorrenciais. A Engenharia Jurídica complementa essa abordagem ao integrar ferramentas de análise de dados, técnicas de gestão e linguagens computacionais, permitindo ao advogado antecipar riscos, otimizar processos e criar soluções que equilibram segurança jurídica e inovação. Esse escopo abrangente reflete a relevância e a adaptabilidade da disciplina, que se ajusta continuamente às mudanças no panorama econômico global.
Recentemente, ao adotar essa abordagem estratégica, tive a oportunidade de colaborar com empresas do setor imobiliário na elaboração de estratégias para financiamento de capital. Esse processo demonstrou a importância de conhecer profundamente o negócio e os objetivos específicos de cada player, permitindo a escolha da alternativa mais adequada. Em alguns casos, por exemplo, a utilização de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) revelou-se a solução mais viável, evidenciando como uma análise personalizada, apoiada em dados e projeções financeiras, pode agregar valor às operações.
Outro exemplo dessa atuação estratégica pode ser observado na estruturação de operações de Trade Finance, em que o conhecimento das estratégias do cliente, aliado a uma compreensão aprofundada do cenário comercial global, mostrou-se essencial. A integração de elementos de estatística e análise de dados foi determinante para orientar a tomada de decisões e garantir que as operações fossem alinhadas às metas do cliente e às condições do mercado internacional.
Essa transformação na abordagem do Direito dos Negócios também demanda uma mudança de postura dos profissionais que atuam na área. O advogado deixa de ser apenas um solucionador de problemas e passa a ser visto como um negociador estratégico e, mais amplamente, como um engenheiro jurídico. Sua missão é viabilizar os objetivos empresariais e criar condições para que os negócios prosperem. Essa nova postura exige um conhecimento profundo do cliente, incluindo os desafios do dia a dia, os objetivos de longo prazo e o contexto econômico em que ele está inserido. Com isso, o profissional jurídico não apenas resolve litígios ou elabora contratos, mas também participa ativamente das decisões estratégicas da empresa, contribuindo diretamente para o desenvolvimento e a execução de projetos inovadores.
Um dos aspectos fundamentais dessa nova abordagem é a capacidade do advogado de compreender a natureza do negócio e adaptar sua atuação às particularidades de cada situação. Por exemplo, a elaboração de documentos societários para uma empresa familiar do agronegócio, voltada ao planejamento sucessório, difere significativamente da estruturação de uma joint venture entre multinacionais.
Abrindo um parêntese, enxergar o cliente de forma ampla não apenas eleva a qualidade do serviço prestado, mas também se torna uma poderosa ferramenta de prospecção e fortalecimento da relação profissional. Muitas vezes, existe um descompasso entre os interesses do cliente e as soluções apresentadas, e é nesse ponto que o jurídico deve atuar como um mecanismo para reduzir esse gap. Entender do negócio possibilita identificar e demonstrar ao cliente o que ele realmente precisa, além de, em muitos casos, trazer à tona oportunidades que não haviam sido percebidas inicialmente, ampliando o impacto estratégico da atuação jurídica.
A tecnologia e o Direito dos Negócios
O uso de tecnologia desempenha um papel crucial na modernização do Direito dos Negócios. Tarefas burocráticas, como a redação de contratos-padrão ou o registro de atas de assembleias, muitas vezes podem ser delegadas a ferramentas de inteligência artificial ou legal techs. Além disso, o Direito dos Negócios não se limita ao interesse exclusivo das empresas. Sua atuação está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento econômico e social. Decisões empresariais, especialmente em um mundo globalizado, têm impactos que transcendem as fronteiras das organizações, influenciando diretamente o bem-estar das comunidades onde estão inseridas e o contexto econômico mais amplo. Nesse sentido, permite alinhar as soluções jurídicas aos objetivos de sustentabilidade e governança corporativa, promovendo práticas empresariais mais responsáveis e resilientes.
O advogado moderno precisa dominar um conjunto diversificado de competências. Além do conhecimento jurídico, deve entender de gestão de projetos, estatística, análise de dados, economia e até psicologia organizacional. O advogado assume uma posição de gestor estratégico, pronto para projetar e executar soluções complexas em um ambiente de constante transformação.
Portanto, o Direito dos Negócios, potencializado pela Engenharia Jurídica, não é apenas uma área técnica ou burocrática; é uma ferramenta poderosa de desenvolvimento e inovação. O advogado que atua nessa área desempenha um papel estratégico, contribuindo para o crescimento sustentável das organizações e para a criação de valor econômico e social. Essa transformação redefine a prática jurídica e consolida o Direito dos Negócios como um dos pilares essenciais para o sucesso empresarial no século XXI.
Por fim, o advogado moderno deve abandonar a postura tradicional de “guardião do não” e assumir um papel proativo na viabilização de negócios. Sua essência deve estar na construção de soluções que equilibrem segurança jurídica e inovação, permitindo que as operações sejam realizadas de forma estratégica e eficiente. Essa mudança de mentalidade posiciona o advogado como um parceiro indispensável para o crescimento das empresas, focado em criar valor e impulsionar oportunidades, ao invés de apenas impor limitações.
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[1] Advogado e Professor Universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Advogado na área de Regulação, Infraestrutura, Energia e Financeira. Experiência destacada na docência na UNICAP, IBMEC e PUCMinas.