Adalberto Arruda*
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, em acalorado debate no Congresso Nacional, está provocando um turbilhão de discussões ao propor mudanças radicais na propriedade e gestão dos históricos terrenos de marinha do Brasil. Esta proposta, que visa revogar dispositivos essenciais da Constituição Federal, promete uma transformação profunda na administração dessas áreas costeiras, cuja complexa e fascinante trajetória jurídica e administrativa remonta ao século XVI. A PEC 3/2022 não só desafia tradições centenárias, mas também abre novas possibilidades para a resolução de conflitos fundiários e a otimização da gestão territorial, levantando questões fundamentais sobre a descentralização do poder e o futuro da preservação ambiental.
A fascinante história dos terrenos de marinha no Brasil remonta ao direito português do século XVI, revelando uma intrincada relação entre a exploração econômica e a gestão territorial. Em 1516, o Regimento da Fazenda delineou essas áreas como fontes importantes de renda através das pescarias e salinas, estabelecendo um marco na administração costeira. Este regime legislativo foi gradualmente evoluindo, consolidando a definição de terrenos de marinha como faixas adjacentes ao mar, inicialmente sob domínio da Coroa Portuguesa e, posteriormente, do Estado Brasileiro, criando um legado jurídico que persiste até os dias atuais.
Em 1957, um estudo seminal, destacou a importância histórica e econômica desses terrenos, vinculando sua origem à arrecadação de rendas das atividades pesqueiras e das salinas, conforme detalhado no Regimento da Fazenda de 1516, que estabelecia:
“No Regimento da Fazenda de 1516 foi estabelecido como direito que aos Reys pretendem haver em seus Reinos por direito natural, as rendas das pescarias, que os Reys por usança de longo tempo costumarão de haver, e levar, assim as que fazem no mar, como nos rios. Item por semelhante forma, as rendas, que antigamente costumarão levar das Marinhas, em que fazem o sal no mar, ou em qualquer outra parte (Cap. CCXXXVII)” (BRASIL, 2017).
Assim, ao longo dos séculos, as regras e definições sobre os terrenos de marinha evoluíram. Em 1808, a Coroa Portuguesa determinou a demarcação e o aforamento desses terrenos. Já em 1831, o Ministério da Fazenda passou a gerir essas áreas, permitindo a ocupação por particulares mediante pagamento de foro. Definiu-se que a faixa de marinha correspondia a 15 braças (cerca de 33 metros) a partir do preamar médio.
Esta perspectiva histórica não apenas sublinha a continuidade das práticas de gestão costeira, mas também realça os desafios contemporâneos enfrentados pela administração pública em harmonizar desenvolvimento econômico e preservação ambiental. A análise convida a uma reflexão profunda sobre as implicações da PEC 3/2022, que promete transformar significativamente a gestão desses territórios ancestrais, reacendendo debates sobre a descentralização administrativa e a sustentabilidade das áreas costeiras.
Neste contexto, com o advento da PEC 3/2022, mudanças significativas na gestão dos terrenos de marinha foram propostas. Em primeiro lugar, a PEC propõe manter sob domínio da União as áreas utilizadas pelo serviço público federal, incluindo concessões, permissões de serviços públicos e unidades ambientais federais, além das áreas não ocupadas. Em contrapartida, áreas destinadas ao serviço público estadual e municipal seriam transferidas para os respectivos Estados e Municípios.
Além disso, a PEC prevê que terrenos ocupados por foreiros e ocupantes registrados no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação da emenda seriam transferidos para o domínio pleno destes ocupantes. De forma semelhante, ocupantes que há pelo menos cinco anos comprovem boa-fé também receberiam o domínio pleno das áreas. Por fim, áreas cedidas pela União a cessionários passariam ao domínio pleno destes.
Propósito da PEC
Observa-se, à primeira vista, que a PEC 3/2022 visa resolver conflitos históricos e facilitar a gestão das áreas de marinha. Argumenta-se que a descentralização para Estados e Municípios permitirá uma administração mais eficiente e adequada às necessidades locais. A transferência de domínio para ocupantes regulares e de boa-fé busca regularizar a situação de muitos brasileiros que vivem nessas áreas há décadas.
Entretanto, críticos da PEC destacam potenciais problemas, como a perda de receita para a União e o risco de privatização excessiva das áreas costeiras, o que poderia prejudicar o meio ambiente e o acesso público às praias. Outro ponto de preocupação é a capacidade dos Estados e Municípios de gerirem essas áreas de forma sustentável e responsável.
Em última análise, diante de todas as considerações apresentadas, fica evidente que a PEC 3/2022 traz consigo uma alteração substancial na administração dos terrenos de marinha, oferecendo perspectivas para solucionar questões antigas relacionadas à regularização fundiária e à gestão territorial. No entanto, a sua implementação requer um debate abrangente em toda a sociedade antes de ser aprovada pelo Congresso Nacional, a fim de minimizar potenciais conflitos judiciais. É imprescindível que haja uma análise cuidadosa das implicações econômicas, sociais e ambientais, garantindo que as mudanças propostas promovam o bem-estar público e a preservação do meio ambiente de forma equilibrada e justa para todos nós!
Referências: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. RE 636.199, Relatora: Min. Rosa Weber, 27 abr. 2017.
*Adalberto Arruda é advogado