Por Luciano Bushatsky Andrade de Alencar e Daniela da Rocha Marques**
A Receita Federal do Brasil, por meio da Instrução Normativa RFB nº 2.160/2023, estabeleceu os requisitos para a retomada do despacho aduaneiro de importação nos casos em que as mercadorias forem consideradas como abandonadas e, portanto, sujeitas à aplicação da pena de perdimento.
No caso, vale dizer que o abandono das mercadorias é passível de sanção pela pena de perdimento, de modo a evitar que os terminais alfandegados restem abarrotados de mercadorias por tempo indefinido, privilegiando aqueles que observam os prazos para início do despacho aduaneiro de importação.
Por sua vez, aqueles que não observam os prazos estabelecidos em lei podem ver as mercadorias por eles importadas passarem à propriedade da União, o que se dá pela aplicação da pena de perdimento sobre as referidas mercadorias.
Todavia, este apenamento não funciona como se dá o perdimento ordinário. Pelo contrário. É possível ao importador a retomada do despacho aduaneiro, mesmo após ultrapassado o prazo legal, desde que requeira formalmente e arque com o pagamento dos valores estabelecidos em normas específicas. A retomada ou início do despacho aduaneiro de importação pode se dar previamente à aplicação da pena de perdimento, ou em momento posterior à aplicação da referida sanção.
O artigo 643 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.8759/09) possibilita a retomada do despacho aduaneiro antes de aplicada a pena de perdimento, desde que haja o pagamento dos tributos aduaneiros corrigidos com juros e multas, além de comprovada a quitação das despesas decorrentes da permanência da mercadoria em recinto alfandegado.
Por fim, o referido Decreto delega à Secretaria da Receita Federal a expedição de atos para a concretização das determinações constantes no referido dispositivo.
Aproveitando-se dessa delegação, a Receita Federal do Brasil expediu a Instrução Normativa RFB nº 2.160/2023, na qual são estabelecidos os requisitos que deverão ser observados para a retomada do despacho aduaneiro de importação, a forma pela qual deverá ser apresentado o requerimento para a referida retomada, inclusive.
Ocorre que a Receita Federal do Brasil decidiu, por motivos desconhecidos, inovar. E essa inovação veio por meio da criação de uma exigência inexistente na norma regulamentada.
Previamente à própria extrapolação da Receita Federal, é importante tecer breves palavras sobre o princípio da legalidade em âmbito administrativo, que funciona como limitador do agir do agente administrativo, inclusive quando a este for delegada a regulamentação de determinado dispositivo legal, como é o caso em tela.
O agente administrativo fica limitado a não criar mais restrições ao particular que aquelas previstas em lei. Ou seja, se foi a vontade do legislador estabelecer determinados limites ao agir do particular, não pode o agente administrativo ir além, estabelecendo mais limites e/ou requisitos que aqueles previstos na lei. Dito isso, passamos aos fatos.
A Instrução Normativa nº 2.160/2023
A Receita Federal do Brasil, na edição da IN RFB n. 2.160/2023, extrapolou o que diz a Lei. Isso porque foi criado como requisito para a retomada do despacho aduaneiro de importação, além da comprovação do pagamento das despesas de armazenagem, como já há previsão no Regulamento Aduaneiro, também a comprovação do pagamento das despesas da taxa de sobreestadia (demurrage).
Ora, o Regulamento Aduaneiro não fala na obrigação da comprovação do pagamento da demurrage, assim, não poderia a Instrução Normativa inovar, criar uma nova obrigação, inexistente na norma.
A demurrage, ou taxa de sobreestadia, é definida como uma indenização devida pelo consignatário do conhecimento de carga marítimo, pela não devolução da unidade de carga no prazo previamente acordado, comumente conhecido como freetime. Seria, digamos, uma taxa devida pelo descumprimento do contrato previamente firmado.
Ordinariamente o freetime consiste em um prazo de 10 a 18 dias, na média, para que o importador desembarace a mercadoria e devolva a unidade de carga em local previamente estabelecido, ou providencie a desova da mercadoria importada e devolva a unidade de carga. A não devolução acarreta o pagamento da demurrage, que consiste em uma taxa diária, de média infinitamente superior ao dia de aluguel de contêiner, devida até a efetiva devolução da unidade de carga.
Não é incomum se deparar com valores de taxa de sobreestadia superiores ao próprio valor do frete, que se reajustou, após ter sido objeto de um aumento sem precedentes em razão da pandemia de coronavírus, consistindo em uma efetiva fonte de receitas para os armadores.
Só existem, vale salientar, dois motivos passíveis de restrição à liberação da carga conteinerizada, sendo eles o não pagamento do frete e o não pagamento de avaria grossa. Ou seja, inexiste a possibilidade de restrição ao registro de Declaração de Importação, ou entrega da carga, nos casos em que não houver o pagamento de demurrage, que não se confunde, repita-se, com o frete internacional.
Se não há a possibilidade de restrição para o registro de Declaração de Importação, ou liberação da carga para entrega ao importador pelo não pagamento de demurrage, porque seria razoável requisitar o pagamento da taxa de sobreestadia para a retomada do despacho aduaneiro de importação, ou para a autorização de registro da Declaração de Importação, nos casos de aplicação de caracterização de abandono, antes de aplicada a pena de perdimento? Não faz sentido.
Assim como não faz sentido exigir mais, por meio de uma Instrução Normativa, do que o próprio Regulamento Aduaneiro que, por ser um Decreto, possui prevalência sobre o ato interno da Receita Federal.
Feitas essas considerações, concluímos que a novidade trazida pela Receita Federal em sede de Instrução Normativa é ilegal e, caso indeferido o requerimento com base em tal requisito, poderá o particular buscar a intervenção do Poder Judiciário para coibir a prática de tal ilegalidade.
*Os artigos não expressam necessariamente a opinião do Movimento Econômico
**Luciano Bushatsky é advogado especialista em Direito Tributário pelo IBET, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo IDP, mestre em Direito Tributário pela Escola de Direito de SP da FGV. Atua exclusivamente na área de Direito Aduaneiro desde 2007.
**Daniela Marques, é graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, pós-graduada em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT.
Leia também:
Importância do `smart mobility´ para o futuro sustentável das cidades, por Vania Rios
Cinco tendências de IA para a gestão de pessoas em 2024, por Camila Paiva
Brasil x Mundo: como está nosso investimento em tecnologia? Por Ana Sitta