Para alguns, empreendedorismo é identificar problemas e o desenvolver soluções, investindo recursos com a expectativa de retorno financeiro, criando negócios que podem beneficiar a sociedade. Para dez mulheres do Pina, incluindo áreas como a Comunidade do Bode, Brasília Teimosa, Areinha e Beira Rio, esse conceito ganhou novos significados.
Ele se tornou um meio de tirar sonhos do papel, transformar vidas e promover empoderamento, indo além da sobrevivência ao oferecer a oportunidade de formalizar seus empreendimentos.
Nesse cenário, o que era uma forma de pagar as contas de cada mês e colocar a comida na mesa se transformou em um palco, onde mulheres pretas e periféricas fizeram seus ‘corres’, desenvolveram rodas de conversa e trouxeram a cultura do seu território como ferramenta para conectar a economia criativa através do empoderamento feminino, que reflete a resistência e a dignidade das envolvidas.
O ponto de partida dessa transformação foi o incentivo financeiro do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC) do Recife, criado pela Lei Municipal Nº 16.215, de 1996. Assim, foi possível conceber a primeira edição da Perifeira, uma feira de rua que destaca mulheres pretas, periféricas e empreendedoras.
Mari Passos, educadora popular da Comunidade do Bode e idealizadora do evento, conta que a Perifeira nasceu ao dar vez e voz a vontade de ajudar as mulheres a conseguirem formalizar seus empreendimentos.
“Nossa ideia sempre foi mostrar às ‘periferiantes’ e dar a elas oportunidades. Queremos dar dignidade a essas mulheres, proporcionar alimentação e um espaço seguro para elas estarem com os filhos e exercerem seus trabalhos de forma segura. Foi com esse objetivo idealizamos esse projeto”, conta Mari.
Identidade periférica
Mari explica que a Perifeira surgiu de sua percepção do próprio lugar no mundo e do desejo de ajudar outras mulheres a formalizarem seus negócios. “Queria fortalecer as minhas amigas, mulheres que eu conhecia e que viviam do empreendedorismo dentro da nossa comunidade”, conta.
As participantes do projeto passaram por um ciclo formativo com três encontros no Compaz Atriz Leda Alves, no Pina, Zona Sul do Recife. As atividades incluíram rodas de conversa e oficinas sobre temas como gestão de marca no Instagram e conexões para impacto positivo.
Entre as participantes estavam empreendedoras como Duda Lopes (Duda Nails), Naara Tati (Xique Xique 081), Jeisse Kelly (JKonfeiteria), Edsandra Chaves (Criola Braids), Isabelle Caldas (Criações Òdàrà), Mayza Lima (barbeira autônoma), Marta Fernandes (Studio Marta Fernandhes) e Andreia Batista (Spa Cantinho da Paz).
Empreendedorismo empoderado
Mayza Lima, barbeira autônoma, destacou que, para além de aprender a gerenciar o seu negócio e poder mostrar o seu trabalho na feira, conseguiu absorver competências para a vida, se empoderando enquanto mulher e profissional.
“Agora sinto que tenho uma visão totalmente diferente dentro do mercado. Eu precisava desse protagonismo. Para mim, vejo como é difícil mulheres serem destaque no mercado. A minha área de trabalho é dominada por homens, então ter essa oportunidade e me enxergar nela é algo muito importante”, conta.
Após a experiência, a jovem atesta que está vivendo um sonho, pois agora se sente mais preparada para formalizar o seu negócio e deseja ajudar outras mulheres da área. “Esperei cinco anos por uma oportunidade como essa, para estar em um local como esse e falar sobre isso. Quero fazer com que outras acreditem no seu potencial e não desistam”, completa.
“A Perifeira ofereceu encontros onde conseguimos nos conhecer melhor, aprender e destacar nossos talentos e habilidades, mostrando que, juntas, somos uma força poderosíssima no mundo dos negócios. A união de mulheres periféricas nos faz desafiar os estereótipos de gênero e raça, além de promover a igualdade no mercado de trabalho”, destaca a confeiteira Jeisse Kelly, gestora da JKonfeitaria e uma das participantes da imersão.
Um movimento de fortalecimento coletivo
Maria Rocha, produtora cultural e colaboradora na organização do evento, reforça o impacto positivo da iniciativa. “A Perifeira resgatou a autoestima dessas mulheres, mostrando que seus empreendimentos podem ser encarados de forma mais profissional. Isso é transformador para o território e para quem convive com elas.”
Maria também destaca o conceito de “empreendedorismo do afeto”, uma vez que as mulheres se unem e se fortalecem com um objetivo em comum: o bem-estar e sucesso de todas. Nesse panorama, são criados ciclos de confiança, construídos dentro do aspecto de empreender.
“Nas favelas, para além dos outros espaços de empreendedorismo, sempre há a questão do cuidado, a ‘economia do cuidado’, pois uma consome o que é feito pela outra, fortalecendo o ‘corre’ da colega que está ao lado. Saber que nossos empreendimentos são fundamentais para transformar nosso território é algo forte e que nos dá empoderamento para seguir”.
Feira e rodas de conversa como espelho do empreendedorismo feminino periférico
O evento gratuito, que aconteceu em 14 de dezembro, impulsionou negócios que oferecem serviços diversos na própria comunidade. A construção vai além de uma feira na rua, pois o evento se destacou pela expressão da personalidade das perifeirantes em seus determinados talentos profissionais.
Maria conta que, juntamente com Mari, idealizaram e mediaram um painel de empreendedorismo com o tema “Mulheres que transformam: empreendedorismo feminino e impacto social”, com o intuito de mostrar exemplos de mulheres das comunidades do Recife que acreditaram em seus sonhos e colheram os frutos do seu trabalho.
“Nossa ideia não era falar tanto sobre o ‘corre’, porque todo mundo que empreende já sabe como é árduo ser mãe, dona de casa e empreender por meios próprios. Ao pensar no painel, resgatamos histórias de empoderamento próprio de mulheres que foram convidadas para contarem suas experiências”, conta Mari Passos.
Para a roda de conversa, foram convidadas Luana Maria, fundadora da Pajubá Tech e moradora do Ibura, que se tornou a primeira mulher travesti a ganhar o prêmio Jovens Transformadores pelo Empoderamento Econômico do Prêmio Empreendedor Social 2024 da Folha de S.Paulo, e Tainá Passos, empreendedora periférica do ramo da gastronomia.
“Acredito que cumprimos a missão de trazer para as pessoas que estavam acompanhando o painel um espelho do que se vive na periferia. Nesse espaço, empreendedoras de sucesso falaram sobre suas experiências e desafios. Tivemos mulheres que viram e assistiram outras mulheres empreendedoras faveladas que estão ascendendo”, comenta Maria.
Segunda edição garantida
Menos de dez dias após a realização da primeira Perifeira, Mari Passos e Maria Rocha anunciaram, em primeira mão, que o evento terá uma segunda edição, garantida pela seleção no edital da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) de Fomento à Cultura.
“A próxima Perifeira será uma celebração da força e inventividade da periferia, mostrando que somos um local de abundância”, celebra Mari Passos.
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