“Sobrevivência da indústria naval brasileira depende de política de Estado”, defende ex-CEO do EAS

Indústria naval brasileira: nesse momento em que a tormenta passou e os estaleiros no Brasil estão na expectativa das encomendas de embarcações incluídas no PAC 3, conversamos com Nicole Mattar. A executiva liderou o soerguimento do Atlântico Sul Heavy Industries e viu o olho do furacão de perto: encontrou uma empresa fechada, endividada e com […]
Indústria naval brasileira: sob a gestão de Nicole Mattar, o EAS mudou até de marca e passou a se chamar Atlântico Sul Heavy Industry Solutions
Indústria naval brasileira: Nicole Mattar liderou a missão aparentemente impossível de reativar o Estaleiro Atlântico Sul, que estava fechado/Foto: Nicole Mattar (Arquivo pessoal)

Indústria naval brasileira: nesse momento em que a tormenta passou e os estaleiros no Brasil estão na expectativa das encomendas de embarcações incluídas no PAC 3, conversamos com Nicole Mattar. A executiva liderou o soerguimento do Atlântico Sul Heavy Industries e viu o olho do furacão de perto: encontrou uma empresa fechada, endividada e com a marca em descrédito. Confira esta entrevista exclusiva, que fecha nossa série Estaleiros no Brasil

Na sequência a um furacão político e econômico que varreu a indústria naval brasileira, a paulistana Nicole Mattar assumiu a presidência do Estaleiro Atlântico Sul (EAS) em 2019, com a missão – aparentemente impossível – de reativá-lo.

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Executiva com mais de 20 anos de expertise em fusões, aquisições e reestruturação de negócios, Nicole encontrou uma empresa fechada e um passivo de R$ 1,3 bilhão. Não bastasse isso, a marca estava com a credibilidade fortemente abalada devido à crise financeira, envolvimento da Transpetro – braço logístico da Petrobras e contratante dos navios do EAS – em corrupção investigada pela Operação Lava Jato, cancelamento de encomendas pelos clientes e a demissão de milhares de empregados.

Em fevereiro deste ano, a executiva deixou a liderança da planta naval, pioneira da retomada da indústria naval do Brasil nos anos 2000, para subir mais um degrau na carreira: atuar como conselheira e consultora de grandes empresas.

Saiu com a sensação de dever cumprido. Afinal, sob sua gestão, o EAS – localizado no Complexo de Suape (PE) – não apenas renegociou suas dívidas por meio de recuperação judicial, mas voltou a funcionar, começou a atuar em outros setores – como reparos navais e grandes estruturas metálicas – e se preparou para entrar no segmento de equipamentos para geração eólica. O estaleiro mudou até de marca e passou a se chamar Atlântico Sul Heavy Industry Solutions.

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Agora, que a tempestade passou e os estaleiros brasileiros estão na expectativa das encomendas de embarcações da Petrobras e Transpetro incluídas no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 3), conversamos com Nicole Mattar sobre o panorama de oportunidades e riscos que se desenha para o setor.

ME: Adaptada à nova rotina, bem mais calma, que no EAS?

Nicole Mattar: Esse tempo como conselheira está sendo muito bom pra mim. Mas vamos ver. Sinto um pouco de saudade do dia a dia, de bater o tambor (risos).

ME: Lula já tinha falado ao longo da campanha que as encomendas de embarcações da Petrobras seriam retomadas, o que se confirmou no novo PAC. Isso deve se formalizar ano que vem com o lançamento de um novo programa para a indústria naval brasileira. Você vê sustentação nessas encomendas? Ou vê risco de que em algum momento acabem canceladas, como aconteceu no ciclo anterior?

Nicole Mattar: Sabemos que a demanda pelas embarcações existe, é a mesma demanda que justificou o plano original da Petrobras de construir sua frota no Brasil, nos anos 2000. Depois veio a crise e uma mudança de postura da Petrobras, que passou a afretar as embarcações ao invés de atuar com a sua própria frota (no caso dos navios tanques, por meio da Transpetro). Como consequência, houve o cancelamento das encomendas que culminaram no fechamento de tantos estaleiros.  

A mudança de direcionamento por parte do Governo e da Petrobras foi extremamente brusca, não houve sequer uma fase de transição, o que obviamente inviabilizou qualquer tipo de adaptação por parte dos estaleiros. Foi muito ruim. Uma decisão muito severa, com consequências extremamente adversas, que aconteceu em um período muito curto de tempo.

A demanda continua existindo, então ela não é o problema. Mas, na minha visão, o Brasil precisa de um direcionamento de longo prazo. E que não pode estar atrelado a um plano de governo, mas sim a uma política de Estado. Sendo este o governo ou qualquer governo que um dia possa vir, é importante que se mantenha a mesma direção.

Portanto, para que a indústria naval tenha sustentabilidade é necessário que haja uma política de continuidade. O plano de retomada não pode se basear em uma questão ideológica, mas em questões econômicas e estratégicas para o país.

“A demanda para a indústria naval brasileira continua existindo, então ela não é o problema. Na minha visão, o Brasil precisa é de um direcionamento de longo prazo para o setor. E que não pode estar atrelado a um plano de governo.”

Indústria naval brasileira: ex-CEO do Estaleiro Atlântico Sul, Nicole Mattar defende níveis realistas de nacionalização em novo programa de embarcações do governo federal
Liderança feminina na indústria naval brasileira: Nicole diversificou negócios no Estaleiro Atlântico Sul e mudou até a marca da empresa/Foto: Atlântico Sul Heavy Industry Solutions (Divulgação)

ME: E de que outras ações essa política de Estado iria depender?

Nicole Mattar: Acho muito importante que, além de se manter a demanda, exista uma preocupação em relação à competitividade da indústria nacional como um todo, e que a indústria naval esteja inserida nesse contexto. Sem dúvida que a definição de políticas assertivas para o setor fabril influenciaria a estrutura de custos dos estaleiros, gerando um ciclo virtuoso, lastreado no aumento de competitividade em relação à concorrência internacional.

ME: No ciclo de retomada anterior, o setor acabou ficando muito vinculado a Lula, PT, Dilma, Lava-Jato. Você avalia que a decisão dos governos Temer e Bolsonaro de abandonar os estaleiros também se deu por questões ideológicas?

Nicole Mattar: Não posso afirmar que foi por uma questão ideológica, porque acho que também tinha uma questão estrutural. O programa de revitalização da indústria naval dos anos 2000 e 2010 tinha três pilares principais. Um deles era a demanda, que foi lastreada nas necessidades da Petrobras, em especial após a descoberta do Pré-Sal.

O segundo era o acesso a crédito. Foram criadas linhas de crédito específicas, mediante a utilização de recursos do Fundo da Marinha Mercante, repassados pelos bancos públicos, principalmente o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. E, por último, a indústria contava com altos índices de conteúdo local. Além disso, houve um reforço nas normas relativas à navegação de cabotagem, assegurando certa preferência para as embarcações de bandeira brasileira produzidas no Brasil. Também, foi feito todo um arcabouço regulatório dedicado ao desenvolvimento da indústria naval. O que acontece em relação a esses três principais pilares? Eles não se sustentaram ao longo do tempo.

Por exemplo, o conteúdo local que foi estabelecido [o mínimo exigido chegava a mais de 70% para algumas encomendas] era muito alto. Pelo que tenho acompanhado, o governo atual não está considerando os mesmos níveis de conteúdo local do passado, mas realizando estudos para assegurar que sejam coerentes com a capacidade da indústria.

Em relação ao crédito que também era um pilar do programa anterior, com a crise, os financiamentos deixaram de ser acessíveis. Já a demanda deixou de existir, com a mudança do direcionamento da Petrobras, que trouxe impactos para o seu Plano de Investimentos.

ME: Na verdade, as metas de nacionalização do Programa de Modernização e Expansão da Frota, o Promef da Transpetro, eram inatingíveis, para uma indústria que ficou praticamente duas décadas parada. Ou seja, nos anos 2000, quando o programa começou, não existia cadeia de fornecedores instalados no Brasil que viabilizasse um índice tão alto de conteúdo local.

Nicole Mattar: De fato, a indústria nacional não tinha – pelo menos naquele momento – capacidade para os níveis de nacionalização exigidos. Além disso , o setor ainda não havia amadurecido suficientemente na curva de produtividade, em comparação com a concorrência internacional. Então, os prazos de entrega determinados nos contratos nem sempre eram compatíveis com a capacidade de produção. Hoje, de forma geral, já seria. Por exemplo, no Atlântico Sul houve uma redução tremenda no tempo de fabricação das embarcações. O primeiro navio [João Cândido] demorou três, quatro anos para ser construído. No último ano de operação do estaleiro antes da paralisação das atividades, chegamos a entregar 3 navios em um ano, com lead time de produção muito inferior.

“O conteúdo local para a indústria naval brasileira que foi estabelecido no ciclo anterior era muito alto. Ainda bem que, pelo que tenho acompanhado, o governo atual não está considerando esses mesmos níveis de nacionalização.”

Ou seja, quando o programa começou, os estaleiros brasileiros não tinham nem de longe a mesma produtividade dos estaleiros asiáticos e também não contavam com uma cadeia de fornecimento que permitisse atender às exigências de conteúdo. Havia uma dependência tecnológica muito forte em relação aos fornecedores estrangeiros. Tudo isso entra nas questões estruturais do ciclo de retomada anterior da indústria naval. Outro problema foram as regras do Fundo de Marinha Mercante para a concessão dos financiamentos via BNDES. Elas começaram a se mostrar muito duras para o momento em que os estaleiros estavam.

ME: Foi a tempestade perfeita?

Nicole Mattar: Sim. E outros fatores se somaram a isso. A crise do petróleo, com forte desvalorização do preço do barril, afetou a rentabilidade da Petrobras e impactou os planos da empresa. Com isso, houve uma mudança de orientação da Petrobras, o cancelamento das encomendas e a decisão de afretar os navios do exterior.

O financiamento à produção foi se tornando cada vez mais difícil. Os estaleiros perderam a capacidade financeira em função do cenário, os armadores e os bancos repassadores dos fundos do FMM começaram a exigir cada vez mais garantias, gerando um círculo vicioso: você não consegue encomendas porque não tem crédito e não consegue crédito porque não tem encomendas.

Então, foi uma combinação de fatores que acabaram culminando na derrocada dos estaleiros. Mas o agravante final, a pá de cal na expectativa de retomada, ocorreu quando o governo adotou um novo direcionamento, deixando clara sua disposição em abrir o mercado, subsidiando a importação de embarcações internacionais. Ou seja, a meu ver, o fim do plano de retomada se deve a um conjunto de erros de concepção da política para o setor, uma crise política, um cenário econômico adverso e um novo direcionamento na economia.

ME: Mas acabar com a política de estímulo ao setor foi a melhor alternativa?

Nicole Mattar: Sou uma defensora da indústria nacional, portanto, minha resposta é negativa. Foi mais fácil matar a indústria naval do que efetivamente tentar criar as condições necessárias para salvá-la. Acho que o país poderia, sim, ter criado condições para salvar o setor, para manter, para sustentar a indústria naval naquele momento de crise, ao invés de simplesmente matar um setor estratégico, que chegou a ter oitenta mil trabalhadores diretos. Não estou falando em subsídios ou protecionismo, estou falando em políticas que neutralizassem as assimetrias competitivas e permitissem aos estaleiros se aproximar da concorrência internacional. Naquele momento de crise econômica e desemprego que o país estava vivendo, os estaleiros poderiam ter dado uma grande contribuição para a retomada econômica.

ME: Voltando à questão da demanda da Petrobras, vemos no PAC 3, mais uma vez, a Petrobras como impulsionadora da revitalização dos estaleiros. A indústria naval no Brasil tem condições de ser sustentável, atrelada dessa forma à cadeia de petróleo e gás e, na verdade, a um único cliente?

Nicole Mattar: A primeira questão, a meu ver, é se ela tem capacidade de atender a outras demandas, além das demandas da Petrobrás. A resposta é sim. E o ideal é que ela o faça, atenda a outras demandas, outros seguimentos, para que não dependa simplesmente de um único mercado. E aí voltamos aos problemas de concepção das políticas de estímulo ao setor implementadas nos anos 2000 e 2010, que nos deixam uma grande lição: os estaleiros precisam diversificar suas atividades. Ainda que exista demanda da Petrobras, o setor não pode ter esse nível de dependência, precisa atuar em outros mercados, além do mercado de óleo e gás.

Essa visão se torna ainda mais essencial, num momento em que o mundo está se preparando para a transição energética. A Petrobras ainda tem muito petróleo para produzir, mas o cenário de transição não pode ser desconsiderado no estabelecimento de políticas para o setor, e tampouco pelos estaleiros. E essa foi uma das razões que levou o Atlântico Sul, na minha gestão, a fornecer serviços de reparo naval e a entrar no mercado de grandes estruturas metálicas, seja para a indústria de óleo e gás, seja para outros setores. O Atlântico Sul pode, por exemplo, produzir torres e fundações para geradores de energia eólica, tanto onshore como offshore, um mercado em que se projeta grande demanda no futuro. E, claro, o Atlântico Sul pode e deve produzir embarcações para diversos setores da economia.

“Os estaleiros no Brasil precisam diversificar suas atividades. Ainda que exista demanda da Petrobras, o setor não pode ter esse nível de dependência do setor de óleo e gás, precisa atuar em outros mercados.”

ME: Que setores, por exemplo?

Nicole Mattar: Na medida em que o país evoluir no modal da navegação de cabotagem, veremos o crescimento na demanda por navios porta-contêineres, granéis e gaseiros. Os estaleiros brasileiros também têm condições de atender a demandas de navios de apoio, que atualmente atendem às plataformas de petróleo e no futuro poderão servir à instalação e manutenção dos parques eólicos offshore.  Ou seja, há um universo de infinitas possibilidades.

ME: Aí entramos na questão da competitividade. Quantos por cento sai mais caro produzir um navio num estaleiro brasileiro em relação à Ásia?

Nicole Mattar: Há três anos, fizemos um levantamento – quando eu ainda estava no Atlântico Sul – e falávamos de mais ou menos 25% de diferença. Obviamente, esse percentual varia, dependendo da embarcação. Não sei dizer de quanto seria essa diferença hoje. Essa diferença depende de vários fatores, como o preço do aço, a variação do câmbio, o custo da mão-de-obra, que é muito menor na Ásia. Ou seja, nem tudo é uma questão de produtividade. A estrutura de custos da indústria naval no Brasil está atrelada ao arcabouço regulatório vigente, e, na minha visão, é esse que deve ser revisitado.

Ou seja, há uma desigualdade entre as condições de competitividade dos estaleiros do Brasil e os concorrentes internacionais. Existe uma assimetria competitiva muito mais relacionada aos encargos trabalhistas, tributários, preço da matéria-prima e disponibilidade da cadeia de fornecimento do que à produtividade, e esses pontos precisam ser considerados. Mas sempre usaram muito a produtividade para justificar as críticas ao setor, esquecendo que, na Ásia, a indústria naval é fortemente subsidiada e tratada como estratégica pelo Estado.

Por exemplo, nos países asiáticos, normalmente no momento dos vales em que você tem uma queda na demanda nos estaleiros, o governo atua com políticas anticrise. O governo é a porta para que os estaleiros continuem operando e dessa forma, continuem evoluindo na curva de aprendizado. Porque continuidade e escala são imprescindíveis para que os estaleiros – como qualquer outra indústria – sejam competitivos.

ME: Considerando todo esse panorama, bem complexo por sinal, como você vê a indústria naval do Brasil daqui a cinco anos?

Nicole Mattar: Depende de como essas encomendas chegarão aos estaleiros. Hoje, só sabemos que a demanda voltará a existir, que o governo fará encomendas, mas temos que ver agora quais as condições. Qual a estrutura dos contratos, as condições de financiamento, as políticas industriais que vão contribuir para viabilizar a competitividade e dar sustentabilidade de longo prazo ao setor? Não tenho essa resposta agora. Tudo vai depender do arcabouço regulatório que será criado.

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