O Brasil tem 100 mil carros elétricos em circulação. O aumento da frota e sua pulverização nacional dependem da infraestrutura disponível para abastecimento desses veículos. E esse é um grande desafio nacional.
Signatário do Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões de carbono até 2050. Para alcançar esse objetivo, governos e empresas estão se mexendo. No que diz respeito à indústria automobilística e ao setor de energia há interesses convergentes. Ambos desenvolvem diversas pesquisas para alcançar a meta da descarbonização e prover cidades com pontos de recarga para automóveis.
A Arena do Futuro, do grupo automotivo Stellantis, é um exemplo. Usando tecnologia Dynamic Wireless Power Transfer (DWPT), esse autódromo em Chiari, na Itália, pode recarregar a bateria de carros elétricos enquanto eles trafegam. Isso é possível porque bobinas posicionadas sob o asfalto transferem energia sem fio aos automóveis.
Para os carros serem abastecidos em movimento basta instalar um receptor que transfere a energia para o motor. Enquanto trafega pela pista, a energia da bateria do carro elétrico não é consumida. Com essa tecnologia, evita-se que o veículo tenha de ficar estacionado por horas para o abastecimento.
O DWPT, que segundo a montadora, simplifica o processo de carregamento e responde aos requisitos de descarbonização, pode ser usado em estradas, portos, aeroportos e estacionamentos. Ele só foi possível graças ao avanço do 5G.
Mas o custo de implantação é altíssimo. E o desafio para um país como Brasil, que na visão dessa montadora, é protagonista entre os países em desenvolvimento que buscam a descarbonização, é encontrar um ponto de equilíbrio.
IATI
Levando isso em consideração, o Instituto Avançado de Tecnologia e Inovação (IATI), com sede em Recife, vem buscando soluções que se adequem à realidade brasileira. “Quando se fala em trocar tudo por algo novo, estamos falando de um cenário de maior investimento possível. No IATI nós buscamos um modelo de transição, adicionando algo inovador ao que se tem hoje”, explica Luciano Tavares, coordenador de Projetos do IATI.
No instituto há várias pesquisas em curso e uma delas visa desenvolver mecanismos onde seja possível colocar um módulo junto ao motor do veículo para produção de hidrogênio, que sendo usado como combustível reduzirá a emissão de gases do efeito estufa. Segundo Tavares, a pesquisa considera todo tipo de combustível, não apenas o etanol – que vem sendo apontado pela indústria automobilística como o combustível da transição até a eletrificação total.
“A questão é: o que podemos faz no cenário atual – onde há milhares de veículos e não só carros, mas frotas de ônibus e caminhões movidas a diesel – para reduzir o impacto do carbono sem termos que descartar o que se tem hoje?”, indaga o pesquisador. E acrescenta: “A solução em desenvolvimento no IATI pretende adaptar a frota nacional”, diz.
Paradigma
Quando o foco é o carro elétrico, temos o paradigma do ovo e da galinha. O que virá primeiro, a rede de pontos de abastecimento ou o crescimento da frota de carros elétricos? A implantação desses pontos de recarga custa muito alto e num cenário de poucos veículos elétricos torna tudo mais desafiador. Quando haveria retorno dos investimentos?
Para Luciano Tavares, a infraestrutura deve vir primeiro, porque o consumidor quer ter a certeza de que, ao comprar um carro elétrico, terá onde abastecê-lo. Esse é um problema que o setor elétrico quer resolver. Primeiro porque é preciso adequar a infraestrutura elétrica nacional a esse novo modelo de consumo e negócio . Segundo, porque isso precisa ser feito a um custo menor.
“A rede foi pensada para abastecer residências, comércio e indústria e precisa passar por uma série de adaptações e além disso, precisamos evoluir com as tecnologias de carregamento”, diz o pesquisador. Hoje os carros levam até quatro horas para serem carregados. Neste sentido, cientistas do IATI estudam para deixar a rede elétrica mais robusta para implantação de pontos de carregamento, considerando que são cargas significativas demandadas pelo sistema. Também há pesquisas que visam desenvolver aplicações de bancos de energia para a geração solar e assim criar unidades autônomas para abastecimento.
“Soluções de armazenamento existem e estão evoluindo, mas na questão da mobilidade o que muda é o perfil e utilização da bateria. Uma coisa é armazenar dentro do carro. A outra é um sistema de armazenamento de energia que vai precisar de robustez e capacidade muito maiores e dispositivos de controle de segurança”, acrescenta Tavares.
Cadeia descarbonizada
Quando se fala em descarbonização, é preciso olhar toda a cadeia de negócios. E no setor elétrico, a fonte geradora também tem que descarbonizar seus processos. Por isso, apesar de o Brasil ser considerado o país com a matriz energética menos poluente do mundo, já que mais de metade da energia consumida aqui vem das hidrelétricas, essas empresas geram em seus processos de produção gases do efeito estufa. Assim, outra linha de pesquisa no IATI é voltada para esse segmento.
“Para reduzir a pegada de carbono na geração de energia hidrelétrica, estamos estudando adicionar um módulo à turbina hidrelétrica que traz um resultado de queima mais limpa e eficiente desse motor, eliminando parte da carga de gases que são lançados no ar”, explica Tavares.
“É importante observar que o projeto de carbono zero não inclui apenas os veículos, mas toda a cadeia de valor envolvida no ciclo de produção”, diz João Irineu Medeiros, Diretor de Compliance de Produto e Regulamentação da Stellantis.
Ele ressalta que isso começa no desenvolvimento de produtos mais eficientes em termos de CO2 e na cadeia de fornecedores, passa pela manufatura mais eficiente, pelo produto, pela rede de concessionários e pelo usuário. “Ao fim do ciclo do produto, outro ciclo se abre, com a remanufatura, reuso e reciclagem. É a economia circular que torna o ciclo virtuoso”, sustenta.
Na fila
Chegar ao modelo elétrico é o sonho de consumo de muitos motoristas. Mas a maioria precisará esperar alguns anos. “No Brasil, tem havido esforço por parte da iniciativa privada, governos, centros de pesquisa e academia na busca de soluções para a descarbonização acessível ao consumidor nacional, porque vai ser difícil ele sair do zero para um veículo elétrico. O custo ainda é alto. Os veículos elétricos ainda têm que passar pelo processo de aumento produção mundial, parque há demanda reprimida devido aos países desenvolvidos, que estão promovendo a transição”, explica Wagner Andrade, Gerente de e-Mobiçity & Cross Car América do Sul da Stellantis.
Estudos apontam que na Europa a paridade de preços entre os modelos a combustão interna e elétrico deve ser alcançada até 2030. Mas aqui a realidade é outra. “Acreditamos que em 2035 teremos capacidade instalada de produção a um custo menor. Ai poderemos estender a tecnologia elétrica para veículos mais básicas da nossa linha”, diz o executivo.
Quando isso acontecer, o motorista, ainda que tenha que pagar um pouco mais pelo modelo elétrico, será compensado em sua conta mensal de combustível. Hoje, um modelo elétrico consome apenas 25% do seu equivalente a gasolina. “Ou seja, se alguém gasta R$ 100,00 por mês com o combustível fóssil, vai passar a gastar R$ 25,00 para abastecer o elétrico. Ele corresponde a ¼ ou ⅕ do custo”, diz Tavares.
Mas até lá, será necessário resolver o paradigma. “Na China, maior mercado elétrico, em países da Europa e mesmo nos EUA, a rede de abastecimento precisou ser incentivada para que fosse dado o pontapé inicial. Nestes países houve incentivos fiscais que promoveram a implantação da infraestrutura, além de isenção de impostos para aquisição do bem”, diz Tavares, do IATI.
Sistema regulatório
Quando se observa atentamente as transformações nesse cenário é possível perceber que as mudanças terão efeito em cascata em vários setores. Não só porque abrem novas oportunidades de negócios e modificam relações de consumo, mas porque mexem com o sistema regulatório brasileiro. Hoje, por exemplo, os postos de combustíveis fósseis são regulados pela Agência Nacional de Petróleo. Com o surgimento de rede de postos para recarga elétrica, eles tendem a passar para a regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Leia outras matérias da série: