A revogação do monitoramento de transações via Pix foi uma reação considerada à altura para tentar pôr fim ao emaranhado de informações conflitantes sobre a medida, mas o episódio ainda deve afetar por algum tempo a já abalada imagem da gestão do presidente Lula (PT) sobre a economia. É o que avaliam especialistas consultados pelo Movimento Econômico após o recuo anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), nesta quarta (15). Opositores seguem colhendo dividendos políticos enquanto o Governo Federal precifica o desgaste com a demora para emitir explicações e se contrapor à polêmica.
Nos bastidores, a informação é de que a revogação já era discutida internamente entre técnicos da Receita Federal há alguns dias, mas ganhou força na terça-feira (14), durante a cerimônia de posse do ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, Sidônio Palmeira. Interlocutores teriam sido sondados informalmente sobre saídas para conter as reações negativas à medida. A proposta de recuo teria prevalecido sobre os argumentos técnicos do Ministério da Fazenda, que havia ido a público, nos últimos dias, tendo o ministro Haddad como porta-voz, para tentar fazer frente aos argumentos contrários.
Ao fazer o anúncio, nesta quarta, Haddad negou que a revogação seja o reconhecimento de uma derrota para fake news. Na ocasião, também anunciou que o governo editará uma medida provisória para proibir que se cobre mais caro a quem for usar Pix em vez de dinheiro. “É impedir que esse ato [a instrução normativa] seja usado como justificativa para não votar a MP”, justificou. “Essa revogação se dá para tirar isso que tristemente virou uma arma nas mãos desses criminosos e inescrupulosos e para não prejudicar a tramitação do ato que será anunciado”, completou o secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas.
A norma anterior, que passou a vigorar em 1º de janeiro, obrigava instituições financeiras a informarem movimentações via Pix superiores a R$ 5 mil, quando feitas por pessoas físicas, e a R$ 15 mil, por pessoas jurídicas, de forma similar ao que já ocorria com cartões de crédito, por exemplo. Segundo o governo, o objetivo era combater a sonegação de impostos e o uso irregular do sistema financeiro, mas especialistas e parlamentares de oposição vinham criticando potenciais impactos sobre a privacidade dos contribuintes.
Governo só intensificou reação contra polêmica na semana passada
O governo passou a reagir com mais firmeza somente na semana passada, após quase dez dias desde o início da polêmica. Mensagens foram compartilhadas por perfis de órgãos públicos e de aliados políticos com informações que buscavam tranquilizar o público potencialmente afetado pela medida, sobretudo Microempreendedores Individuais (MEI) e prestadores de serviço que atuam na informalidade. O Ministério da Fazenda ressaltou que o Pix seguiria gratuito, sem qualquer taxação. As peças de comunicação, porém, insistiram em um tom professoral sobre a necessidade de formalização como saída para quem quer movimentar montantes maiores em seus negócios, medida que, embora respaldada pela lei, ampliou a artilharia de opositores.
Após o anúncio da revogação do monitoramento do Pix, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), autor de um vídeo com mais de 200 milhões de visualizações que contém informações apontadas como inconsistentes pelo Ministério da Fazenda, avaliou o recuo do governo como uma vitória, classificou a data como histórica e disse que “o Brasil parou Lula”. “Pode voltar a usar o Pix sem a lupa do governo. O povo se uniu na rede social e derrubamos a decisão. Nunca subestimem o poder de um vídeo”, declarou.
A deputada federal e presidente nacional do PT, Gleisi Hoffman, também foi às redes sociais comentar o assunto. A parlamentar classificou a medida anunciada pelo governo como acertada e disse que nunca se pretendeu “taxar o Pix nem cobrar imposto nas transações, cometendo injustiça contra quem batalha na informalidade”. “Para que essa dúvida não permaneça na cabeça das pessoas, explorada pela oposição com suas fake news, desinformação e golpes, foi correto revogar”, avaliou.
Entre informações conflitantes, caso do Pix vinha impactando a rotina
Baseada em premissas falsas ou não, a polêmica já vinha impactando a rotina das pessoas. É o que avalia o economista Valdeci Monteiro, sócio-diretor da Ceplan Consultoria Econômica, professor de Economia e assessor de planejamento da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Ele argumenta que, como a economia gira em torno de expectativas, qualquer desencontro em anúncios do governo é prejudicial. “Anunciaram que iriam fazer alguma coisa com o Pix e isso gerou uma insegurança muito grande, sobretudo no pequeno comerciante. Afetou uma moeda que todo mundo está usando. Faltou comunicar melhor”, argumenta.
O economista diz que a comunicação da Receita focou muito em mostrar como o monitoramento das transações por Pix seria necessário para combater a sonegação e dar mais transparência ao sistema, medidas que, ainda que legais, geram má vontade da população quando atreladas às dificuldades do próprio governo em diminuir os gastos públicos. Apesar disso, Monteiro acredita que os efeitos negativos poderiam ser mais graves e que é possível reverter esse cenário. “Se fosse resumir, diria que houve um problema de comunicação. Você cria uma insegurança em um país que vive certa instabilidade. É preciso tomar cuidado com o que fala. O estrago poderia ser maior, mas a intensidade ainda terá que ser avaliada”, declara.
Já o sociólogo e cientista político Rudá Ricci avalia o problema a partir de três camadas: a da disputa política, a da comunicação e a da concepção técnica do governo. Ele diz que a equipe econômica age por princípio e tem dificuldade de se preparar para fazer o jogo político em meio a anúncios com potenciais negativos. “O Haddad tem uma dificuldade muito grande de entender o jogo político. Ele não leu Maquiavel e não sabe que no jogo político tem maldade. Quando se elabora uma normativa como essa, independentemente de ter um conteúdo técnico, é preciso entender como essa orientação vai ser usada pelo adversário”, defende.
Ricci diz que não havia opção a não ser revogar a medida por acreditar que os argumentos do governo não tinham mais como prosperar. “Tinha que cortar o mal pela raiz. No sacolão, supermercado ou boteco, não se falava em outra coisa. Deve afetar a popularidade do governo momentaneamente. É preciso anunciar uma agenda que supere essa”, relata, avaliando a decisão como um sinal de prevalência da nova comunicação do governo. “O Sidônio ganhou do Ministério da Fazenda em ter retirado os indicados da [primeira-dama] Janja da Comunicação. Ele está muito empoderado. Me parece que o Lula ganhou um novo assessor equilibrado e que tem leitura política. Acho que o Sidônio pôs os carros no trilho”, completa.
Sócio-fundador do Pierozan Advogados, mestre em Direito da Propriedade Intelectual e especialista em direito digital, o advogado Felipe Pierozan acredita que os apelos amplificados pelas redes sociais podem ter sido determinantes, mas não foram o único motivo para a revogação. “Às vezes a medida é impopular, há um movimento popular, mas ela se mantém. Neste caso, com certeza, a pressão social funcionou e fez com que repensassem as coisas. Foi uma medida tecnicamente ruim da forma como foi colocada”, avalia, indicando que a sensação que ficou foi de muito rigor técnico da Receita sem contrapartidas para o cidadão.
O especialista diz que se o monitoramento do Pix fosse em frente nos termos em que foi posto, um efeito concreto no cotidiano das pessoas poderia ser o temor de usar esse método de pagamento instantâneo, como já vinha sendo relatado nas redes sociais, o que seria um retrocesso do ponto de vista tecnológico. “O Banco Central deu show a nível mundial com o Pix, mas poderíamos ter a volta do uso frequente do dinheiro em espécie, especialmente em mercados mais informais. Seria um retrocesso”, conclui.
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