O amolador Ponciano Ferreira dos Santos faz parte de um grupo formado por 19 milhões de microempreendedores informais que trabalham por conta própria no Brasil. Caso esse contingente de trabalhadores fosse formalizado, poderia trazer um incremento de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) em quatro anos, segundo um estudo feito pelo renomado Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Ponciano tem uma carrocinha, onde amola alicate, tesoura, faca e faz cópia de chaves, numa esquina do Bairro Novo, em Olinda, próximo aos bancos, farmácias e de muitos estabelecimentos comerciais. “Não é fácil. Aqui, só dá mais dinheiro na semana que os aposentados recebem. O trabalho garante o básico. Compro comida, pago água e a luz. A carne, como minha filha trabalha, compra no cartão dela”, comenta.
Ele trabalha na rua há 26 anos. Grande parte deste tempo foi informal. Depois, se formalizou como MEI, mas parou de pagar há dois anos, quando a dona do Lava Jato que ficava perto do seu ponto comercial se mudou. “Ela entrava no site, tirava as informações, eu imprimia o boleto aqui perto e pagava”. Para ele, não fez diferença estar ou não “formalizado”, mas está pensando em voltar a pagar o MEI por causa da futura aposentadoria.
Com o ensino médio completo, Ponciano é evangélico, concluiu o curso de bacharel em Teologia na Faculdade de Teologia Integrada (Fatin), que tem uma parceria com a igreja que frequenta. Ele chegou a trabalhar de torneiro mecânico em São Paulo depois de fazer um curso do Senai. “Aqui, consegui um emprego nesta área, mas pagava pouco. Era quase o que eu tirava na rua. Preferi a rua, porque não fico trancado o dia todo dentro de uma sala com uma máquina e converso com as pessoas”, comenta. Ele tem uma conta num banco tradicional e aceita PIX.
O estudo do IBRE
Voltando ao estudo do IBRE, foram utilizados informações do IBGE, como a PNAD; o cadastro do CadÚnico, do governo federal, entre outros. “O estudo cruzou muitos dados oficiais. E mostra que a formalização deste grupo retiraria 5 milhões de pessoas da linha de pobreza”, resume a co-fundadora da Aliança Empreendedora, Lina Kempf. A organização desenvolve ações para apoiar microempreendedores em situação de vulnerabilidade.
A formalização destes 19 milhões de informais só acontecerá se for feita uma política pública voltada para esta inclusão, segundo Lina. E acrescenta: “É muita gente para ser ignorada. Os programas bem direcionados para este público são extremamente importantes para ocorrer o crescimento dele”, argumenta Lina.
Ela resume pelo menos três pontos que devem ser levados em consideração nas políticas a serem desenvolvidas: “A primeira é o empoderamento porque eles não se enxergam como empreendedores e acreditam que cursos e capacitações ‘não são pra eles’. A segunda é ter uma capacitação numa linguagem adequada. E a terceira é uma conexão com oportunidades de crescimento, como o acesso ao microcrédito, feiras, eventos etc”. Segundo Lina, muitos também têm medo de se endividar.
“Tem que ter uma orientação nesta formalização. Caso não tenha, pode comprometer a vida destas pessoas. Muitos recebem Bolsa Família, BPC e estão em situação de vulnerabilidade. Empreender é ter uma renda volátil. Leva um tempo até o novo negócio se estabilizar. O microempreendedor que está na base da pirâmide precisa comprar comida pra hoje”, defende Lina, acrescentando que a transição deve ser gradual e acompanhada. Quando este pessoal se formaliza, não pode mais receber, por exemplo, o Bolsa Família.
O Brasil tem 15,5 milhões de MEIs, segundo o Sebrae. Desse total, 4,6 milhões estão inscritos no CadÚnico e metade deles recebe o Bolsa Família. Em ambos, os usuários só conseguem se inscrever se tiver uma renda muito baixa. Eles estão na base da pirâmide e formam uma parcela da população muitas vezes invisível ao sistema financeiro tradicional, que enfrenta barreiras significativas para acessar o crédito, como a falta de garantias. A base da pirâmide dos empreendedores brasileiros é formada pelos informais e “MEIs de subsistência”.
Houve um grande aumento no número de MEIs no Brasil nos últimos seis anos. Eles eram 8 milhões em 2018. Este ano, já são 15,5 milhões. Vários fatores contribuíram para isso. A pandemia foi um deles, porque muita gente ficou desempregada e preferiu começar a empreender usando um MEI.
“Também ocorreu uma pejotização”, comenta a gerente da Unidade de Políticas Públicas do Sebrae-PE, Priscila Lapa. Isso significa que muitas empresas adotaram a mão de obra do MEI, que recebe como pessoa jurídica e sem qualquer direito trabalhista.
E, por último, Priscila diz que muita gente não entende como é o MEI. “Há uma inadimplência histórica. A maioria deve um ano. E aí vai para a dívida ativa e o CPF fica complicado”, explica Priscila. “O MEI também pode receber até R$ 81 mil por ano, que é um valor defasado para algumas atividades”, conta a gerente.
Uma das políticas consolidadas no Brasil que está ajudando os pequenos empreendedores e até microempresas é o microcrédito oferecido por instituições de fomento, que geralmente pertencem ao Executivo estadual ou municipal ou bancos como é o caso do Banco do Nordeste, com o Crediamigo.
O microcrédito fez diferença na vida da empreendedora Luciana Luzia, que produz pizzas, na Zona Oeste, do Recife. “A vantagem de se formalizar foi ter acesso ao financiamento. Fiz um curso do Bora Empreender Mulher e em seguida consegui um crédito. Usei o dinheiro pra comprar um forno profissional, que me permite assar uma pizza em dois minutos e meio”, conta Luciana Luzia O Bora Empreender é uma capacitação oferecida pelo governo de Pernambuco.
Antes do forno profissional, a pizza feita por Luciana passava de 20 a 25 minutos no forno doméstico e “não saia com a mesma qualidade, porque o profissional gratina só em cima, ficando mais crocante”. Ela começou a empreender em 2017. E até 2023, teve alguns períodos que paralisou a atividade por motivos pessoais, como a chegada de um bebê. Em 2023, se formalizou como MEI.
Outro fator que Luciana considera fundamental para o crescimento do negócio é estudar. “Saber qual o seu público alvo, separar o dinheiro da empresa do seu, padronizar a produção”, conta ela. E acrescenta: “Em 2017, quando comecei, fazia pizza como se estivesse fazendo para a minha família. Se tivesse padronizado a forma de fazer, tinha ganhado mais dinheiro. Se tivesse o conhecimento que tenho hoje, estaria numa fase mais à frente do negócio”, conta ela, que conseguiu um empréstimo na linha de microcrédito da Agência de Empreendedorismo de Pernambuco (AGE).
No horário comercial, Luciana trabalha como auxiliar administrativo numa empresa de médio porte. “O meu sonho no futuro é me manter só com o meu negócio, mas tenho uma despesa alta e ainda preciso trabalhar fora. Empreender é uma caixinha de surpresa e a pessoa tem que estar preparado. É diferente do emprego formal, que o dinheiro cai na conta sempre no mesmo dia. Num mês de movimento bom, já ganho mais com as pizzas”, comenta.
A força do microcrédito
“Como política pública financeira, o microcrédito tem que ter um posicionamento transformador. Precisa ser orientado, produtivo e fazer a interface na ponta para não gerar um problema de endividamento”, resume a diretora-presidente da AGE, Angella Mochel. O microcrédito oferece empréstimos de até R$ 21 mil.
A instituição começou a oferecer o crédito em 2019. Até 2024, o tíquete médio dos empréstimos ficou em R$ 3 mil. Cerca de 68% do microcrédito da instituição foram destinados às mulheres. E o dinheiro só é liberado depois que o empreendedor faz um plano de negócios que é acompanhado por alguém da instituição. No ano passado, a linha de microcrédito da AGE emprestou R$ 10,1 milhões em 3.422 operações.
Ainda com relação ao microcrédito, chamam a atenção os números do Crediamigo, do Banco do Nordeste (BNB) que existe há 26 anos. Em 2023, esta linha de financiamento liberou R$ 10,6 bilhões em 3,56 milhões de operações nos 11 Estados de atuação da instituição que inclui os nove Estados do Nordeste, parte de Minas Gerais e o Norte do Espírito Santo. Antes de receber os recursos, os empreendedores passam por um treinamento com noções básicas, como o que é lucro, capital de giro etc.
“O Crediamigo tem melhorado a vida de muita gente. Temos clientes que começaram com um financiamento de R$ 500 e hoje conseguem tirar R$ 10 mil. E alguns que saíram do microcrédito e passaram a ser clientes das nossas agências”, diz a gerente geral do Crediamigo Recife, Elza Marques.
Leia também
As micro e pequenas geram 80% do emprego e só acessam 12% do crédito
Caruaru pronta para receber fábrica YTO, que produzirá 120 tratores por mês